Páginas

domingo, 16 de abril de 2017

E O LAVA-JATO DA ADVOCACIA?

Meditando Sobre a Nobre Profissão em Tempos de Cólera...


A cartelização da advocacia: concentração econômica produzida pela corrupção.



Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro


Os advogados brilham nas crises.  São demandados para resolvê-las, para administrá-las e também para criá-las. 

Seu ministério privado é prerrogativa que constitui o Estado de Direito e parametriza a Justiça. Seu papel, como garantia da ampla defesa e do contraditório, admite até mesmo a contradição. Cumpre aos advogados atuar na defesa dos inocentes e também na defesa dos canalhas. Em ambos os casos exercem papel essencial à administração da Justiça. 

Os exercícios de defesa e consultoria, tutelados pelo advogado, confundem-se com a origem da civilização. Afinal, o patrocínio das causas é bíblico - requer fé (que o digam Moisés e Jesus).  

A advocacia exige coragem, conhecimento profundo da natureza humana, tolerância, cultura, profissionalismo, maturidade e zelo. Assim, o uso deontológico dos instrumentos legais e das estratégias processuais e negociais é que distingue o bom profissional.  

Sem advogado não há justiça. A inviolabilidade da advocacia é pilar desse conceito. O advogado é o primeiro juiz das causas que se lhe apresentam ao patrocínio -  e o senso de justiça deve sempre nortear sua conduta profissional.

Não por outro motivo, as prerrogativas da advocacia constituem base da democracia.  É por esse motivo que se exige do profissional da advocacia, no seu ministério privado, atenção a um rígido código de ética. Por mais pesada que a causa seja, deve o profissional atuar sem macular a nobreza da sua atividade. Isso distingue os grandes dos que ficam pelo caminho, incluso os de fama efêmera...

O presente e extenso artigo - que fique claro - não ataca a sofrida advocacia, a excelência técnica de grandes bancas ou a coragem solitária dos leões que caçam todos os dias para manterem-se vivos na selva. Não se questiona a figura, a importância histórica e o perfil conceitual da advocacia. Muito menos se questiona a dignidade da profissão de advogado. 

Este artigo analisa a proliferação dos que não seguem os preceitos da nobre profissão, dos que se concentram na canalhice a pretexto de defender os canalhas, dos que conspurcam a profissão e, no entanto, ganham destaque social em uma sociedade doente.

Se a doença deve ser combatida, antes que comprometa a Nação, que o tratamento duro abranja, também, a advocacia.


A massificação da nobre profissão


Como advogado, sei bem da dureza que é assumir casos  que causam antipatia popular. Compreendo também  a necessidade de ser bem remunerado por isso.

A preocupação com a inviolabilidade e o respeito ao profissional torna-se mais aguda quanto mais complexa for a causa e maior o estigma social imposto ao defendido. No entanto, há um cristalino marco divisório:  deontologicamente, o profissional, ao advogar para canalhas, não deve patrocinar a canalhice. 

Essa simples lição está se perdendo no cotidiano das gerações presentes, e a  perda desse norte constitui uma das desgraças que acometem hoje a nobre profissão. 

É paradoxal. A perda do padrão moral da advocacia tem origem na constituição que mais estimulou o exercício de direitos na história do Brasil: a "Constituição Cidadã de 1988". 

A Carta de 1988 parece ter liberado o melhor e também o pior das instituições ligadas ao direito. E o pior foi se instalando na medida em que a chamada "Nova República" foi se degenerando, até o desastre atual - pós o populismo lulopetista e gestação de uma juristocracia amoral.
 

Vamos aos fatos: 

Primeiro, ocorreu a massificação desenfreada da profissão e da jusburocracia no Estado. 

Essa massificação ocorreu em sentido contrário à impressionante concentração econômica no setor - fruto da cartelização operada por verdadeiras "padarias jurídicas", que eliminaram o juízo do advogado e, no lugar, inocularam o utilitarismo comercial. O fenômeno destruiu o mercado e contribuiu para a proletarização da massa de profissionais.

A massificação decorre da oferta de demanda, originada na estrutura universitária mercantilista estabelecida no Brasil, com a conivência do Poder Público. Essa fábrica de bacharéis é a grande responsável pela perda gradativa da dignidade conferida historicamente à nobre profissão. 

É impressionante a massificação de cursos no Brasil,  e a consequente inflação de  bacharéis formados em direito.  É um diploma de fracasso institucional do ensino superior tupiniquim. Afinal, o país detém sozinho,  mais faculdades de direito que todos os demais países do planeta somados! 

Segundo, não há ética que sobreviva a tamanha vulgarização no exercício da profissão.  Essa massificação de profissionais do direito reflete a péssima qualidade da jusburocracia de Estado. Se reflete na mediocridade instalada no  judiciário, defensorias e promotorias públicas, nas áreas de fiscalização,  da advocacia pública, chefias de polícia, cartórios, etc.   A jusburocracia tornou-se uma hidra, monopolizada por bacharéis interessados apenas em cargos e salários - e o contribuinte que se dane!  

A jusburocracia, hoje,  é uma doença simbiótica - um câncer que corrói a organização política da sociedade. Alimenta-se da corrupção, do desperdício e da ineficiência que deveria combater.

O materialismo aético distorceu a dignidade que confere sobriedade ao profissional do direito. Saíram de campo os velhos, respeitados e discretos profissionais e, no lugar, surgiram os exibicionistas,  instrumentalizadores de direitos.

A monstruosidade se fez notar já em meados dos anos 90. Na última década do século XX já se notava o avanço da proletarização e da cartelização.  Com a reforma do Estado de 1995,  grandes sociedades de advocacia internacionais, enxergando uma oportunidade de mercado na expansão das privatizações e internacionalização da economia, praticamente absorveram ou mimetizaram escritórios tradicionais no Brasil e destruíram a base européia das consultorias especializadas. Expandiram os "shopping centers" do time-sheet , organizações de full service que praticamente aviltaram os valores dos honorários cobrados pelo varejo de consultorias (que passaram a ser apelidadas de  boutiques). Verticalizaram os serviços nos piores moldes norte-americanizados.  

Foi a partir do final do governo FHC e durante os governos esquerdistas lulopetistas que a massificação se acirrou, visando interesses pouco republicanos. 

Terceiro, o fenômeno das organizações criminosas, na política e fora dela. A crise no crédito após duas grandes quebras na economia mundial e o acirramento da burocracia fiscal, destruíram os pequenos e médios escritórios de advocacia, e geraram uma enorme crise moral - que se agravou com a exposição às claras das horrendas chagas da corrupção endêmica inoculada nas instituições do país. Esse fenômeno desabou sobre a nobre profissão, retirando-lhe todos os resquícios de nobreza... 

De fato, a nobreza da advocacia sempre esteve no equilíbrio das relações burocráticas, na cordialidade formal e distanciada entre os atores  e no respeito às regras comezinhas do Estado de Direito e do mercado de profissões.  

NADA DISSO mais ocorreu, a partir do Século XXI, no Brasil - um país abarrotado de novos profissionais formados em linhas de produção de bacharéis,  jogados às pencas no mercado corroído pelo abuso, pelo péssimo exemplo emanado dos quadros horrendos que passaram a judicar na cúpula da juristocracia,  pelo desrespeito entre colegas, pelo aviltamento das remunerações, pela arbitrariedade burocrática e, sobretudo, pela desonestidade cotidiana. 

Não por outro motivo, enquanto a juristocracia disparava suas remunerações redundantes, na Administração Pública, o mercado tratava de substituir profissionais liberais por hordas de estafetas engravatados, alocados em grandes padarias jurídicas ou distribuídos por pequenas bancas submetidas a um crescente aviltamento.

Quarto, a Ordem dos Advogados do Brasil - uma instituição que deveria zelar pela dignidade do direito, decaiu a olhos vistos e, de fato, foi responsável por esse aviltamento. 

Enfraquecida por sucessivas gestões com frágil perfil político e tomada por lobbies das grandes universidades pagas, dos grandes escritórios e dos seguimentos corporativos de advogados públicos. Contaminada por convescotes de criminalistas associados ao crime,  a grande Casa do Advogado  abrigou campanhas eleitorais milionárias para a sua direção - algumas com verbas similares à de grandes pleitos partidários. 

É cediço o envolvimento de entidades como CBF ou  até Associações de Cassinos, pagando deslocamentos e jantares para aliciamento de eleitores  para algumas chapas. 

O fato é que a OAB, em algum momento, vergou a espinha à crise moral que se abateu no Brasil. Mudou seu perfil completamente, de uma década para outra. 


A advocacia-ostentação

Nesse período, a partir do final dos anos FHC, e no período do lulopetismo, corruptos e marginais passaram a exibir mansões, joias,  carrões e, também, "os seus advogados"... Assim, cresceu sobremaneira o volume de canalhas "bem defendidos" por defensores que pareciam ser orgulhar de possuir comportamento idem. 

Por mais que se alertasse a instituição da OAB, parece que a corporação não atentou ou não quis atentar para o grave efeito desse fenômeno na conduta da advocacia nacional. A falta de cuidado com a ética ganhou proporções dramáticas, e o fenômeno fragilizou não apenas o judiciário tupiniquim, mas a própria instituição da Justiça.

O mais grave foi a industrialização dos "tribunais de ética e disciplina", que passaram a massacrar pequenos advogados em falhas decorrentes da sua má formação enquanto ignoravam os "ícones" ocasionais que surgiram no período, transmitindo a mensagem que conviver com os grandes pilantras garantia sucesso...


A era das delações

Essa complexidade foi ampliada com o combate intensificado ao crime organizado e à corrupção. Quando imputados puderam se tornar  "colaboradores" da justiça. 

O esgoto das delações nas investigações dos delitos de corrupção no Brasil, transformou notórios canalhas em "colaboradores".  Isso fez subir à tona da sociedade o lodo fétido das posturas sociais arrogantes que distorceram valores da vida pública e expuseram a miséria de várias vidas privadas. Esse lodo fétido respingou no judiciário e na advocacia.

Surgiram profissionais cúmplices dos patrocinados, advocacias "familiarizadas" com judicantes,  profissionais pombos-correio e lavadores de dinheiro por meio de escandalosos "honorários". Tornou-se comum questionar o profissional sobre o quão ciente estaria da origem eventualmente ilícita do dinheiro com o qual estava sendo remunerado.  Nasceram profissionais no uso da remuneração com intuito de "esquentar" quantias  não declaráveis ou declaradas pela pessoa errada. 

O escopo da lei de lavagem de dinheiro instituída no país, foi justamente garantir a rastreabilidade do capital,  para que as autoridades públicas pudessem conhecer o caminho entre a infração e o destino dos bens. 

Por óbvio não se impôs ao advogado o dever de investigar a origem do dinheiro ou os atos que justificaram sua aquisição. No entanto, é patente que o recebimento de valores a título de honorários, proveniente de serviços prestados a imputados em delitos graves como o de corrupção ou participação em organização criminosa, deveria ser especialmente registrado e anotado, até para que os responsáveis pela investigação (dentre os quais, por óbvio,  não está o profissional liberal), tivessem à sua disposição elementos para construir a cadeia de distribuição de eventuais recursos ilícitos.

Porém, OAB e Judiciário - em especial o STF - hoje formado pela pior judicatura de sua história, não compreenderam assim a questão, jogando sobre esse mecanismo o manto da "prerrogativa" que, com certeza, ainda irá explodir num futuro próximo. 


A cartelização da advocacia

Paripassu com a "lavanderia jurídica",  a cartelização da advocacia foi ampliada pela concentração econômica produzida pela corrupção.

A concentração econômica nos fenômenos criminológicos complexos, levou ao aparecimento de figuras notórias, que se especializaram em trabalhar com determinadas corporações criminosas. Alguns ícones desta postura desprezível, é fato, chegaram a ocupar postos  proeminentes na república, para desgraça da advocacia brasileira.  

Assim, os canalhas instrumentalizaram princípios caros ao Direito para proteger poderosos de plantão.

No direito criminal - é lição antiga: o advogado não possui "clientela".  Mas parece que isso agora passou a ocorrer. 

No campo criminal, o network é importante, mas ele não deve ser confundido com o network da canalhice, porque esta atua simbioticamente. 

Porém, nas décadas de 1990 e no presente século, nos governos tucanos e petistas, determinados grupos de profissionais do direito passaram a interagir como acólitos jurídicos das "privatizações", "arquivamentos" e "operações abafa". Essa especialização perversa - fruto de interações para além dos limites da ética entre personagens públicos e privados, gerou um ramo de "consultorias" a prefeituras e estatais, um sistema-padrão de defesa de "mensaleiros", uma leva de organizadores de "PPPs" e uma casta de patronos de envolvidos em estratosféricos escândalos de corrupção. Esse padrão ficou exposto como uma ferida na Operação Lava-Jato, e tornou-se um câncer no esforço do sistema em se desfazer da própria operação (que lhe incomodara). 

A interação perversa com a política populista foi muito facilitada pela "porta-giratória" operada pelo PSDB e PT - pela qual foram (para a vida pública) e voltaram (para a vida privada), vários personagens, que "turbinaram" escritórios notórios na vida pública jurídica do país.  Essa porta giratória, por exemplo, destruiu toda uma geração de velhos e respeitáveis criminalistas, permitindo a ascensão de uma nova camada de jurisconsultos pouco afetos à discrição e modicidade na vida profissional. Esse fenômeno político-econômico é diretamente responsável pela sobrevivência da canalha vigorante na advocacia. A boa conversa social... foi substituída pela cafonice dos regabofes-ostentação.

Mais uma vez: Não me refiro, claro, aos profissionais sérios e dedicados - mas àquela parcela acometida da disfunção cognitiva, insensível, ciosa dos  benefícios nababescos temperados com uma perversa sensação de impunidade...


O fator x

Mas o fator x, o caos como probabilidade matemática, também atua para interromper o mal. 

A renovação ocorrente nas carreiras concursadas - nos órgãos da polícia, magistratura e ministério público, adiciona  à incrível equação,  novas incógnitas. 

Ainda que sujeitas a idiossincrasias pessoais, compromissos ideológicos, purismos e razões culturais, novas incógnitas atrapalham  a podridão instalada no ambiente jurídico.

Radicais livres no ministério público,  e também no ministério privado da advocacia - podem formar  substrato para uma reação orgânica  saudável, que pode ampliar o desconforto da canalhice. 

Não se tenha dúvidas, portanto. Uma hora, todos serão atingidos pela sinergia de delações, diligências, prisões, buscas e apreensões iniciadas e parametrizadas por "Operações Lava-Jato" e demais investigações conexas. 

A limpeza é sempre encetada por uma nova geração de persecutores e magistrados descomprometidos com a canalhice.  E sempre haverá que haja com dignidade. Um que assim atue, desnudará cem outros. 

De fato, a podridão moral é um ouroboros. Não pode conter o processo autofágico da devassa nacional, tal qual uma vez já encetada pela Operação Lava-Jato.

E é aí que entra o busílis: como desfazer a cartelização da Justiça e da advocacia, ocasionada pelo processo de corrupção que atingiu o Brasil, agora que o fenômeno está se tornando notório e cristalino?



Hora de resgatar a verdadeira advocacia

Para estancar o mal, portanto, será necessário por o dedo na ferida...

A nobre profissão precisa de ser defendida pelos que a amam, não pelos que a usam para finalidade diversa da justiça.
 
Nestes "tempos de cólera", está na hora da verdadeira advocacia separar joio de trigo e resgatar a dignidade da nobre profissão.

É muito duro cortar a própria carne e amputar membros... mas se a advocacia nacional não sair da letargia... contribuirá para a redução das liberdades e garantias fundamentais no processo de mudanças estruturais que está por vir.

O caminho passa pela retomada dos órgãos de classe, pelos verdadeiros advogados.  

Sem o advogado não há justiça. E há justiça a ser feita, pelos próprios advogados .





*leia ainda: Quando a Fogueira das Vaidades Queima Lixo





Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio diretor do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Integrante do Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB, fundador, primeiro presidente e membro emérito da Comissão de Meio Ambiente da OAB/SP, membro das Comissões de Política Criminal e Infraestrutura da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB/SP. É Vice-Presidente da Associação Paulista de imprensa - API, Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal e responsável pelo blog The Eagle View.




.

2 comentários:

  1. Parabéns pelo artigo. Reflete claramente o que é hoje a advocacia brasileira.

    ResponderExcluir
  2. Como seria um cliente tendo que recorrer apoio jurídico no escritório deste advogado? Igualzinho a todos outros. Nada muda. Só o discurso.

    ResponderExcluir

Seja membro do Blog!. Seus comentários e críticas são importantes. Se possível diga quem é você e registre seu e-mail. Termos ofensivos e agressões não serão admitidos. Obrigado.