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segunda-feira, 9 de junho de 2025

FIGARO! MAS... CADÊ O FACTOTUM?

Pai e filha unidos numa doce confusão operística...


Cantores e orquestra ao final da Ópera, no Theatro São Pedro



Por Fernanda Pinheiro *


Quando pequena meu pai não ficava muito em casa. Mas, quando estava, chamava-me para assistir a coisas que ele gostava na televisão: filmes de ação, filmes de guerra, filmes europeus antigos e... ópera.

Eram três as favoritas: Carmen, Die Walküre e o Barbeiro de Sevilha.

Eu dormia rápido. Via, quando muito, partes do primeiro ato de cada uma dessas obras.

Tanto assim que, no caso de Barbeiro de Sevilha, eu só me lembrava da aria que apresentava o barbeiro Figaro, em que ele proclamava que era o factotum della città.

Apesar disso, essas três óperas ganharam um lugar especial no meu coração, por representarem raros momentos de interação pai e filha.

Décadas se passaram e eu, por diversos motivos conhecidos e desconhecidos, acabei me tornando uma filha mais ausente do que gostaria. 

Não obstante, o hábito de assistir óperas se manteve vivo em mim.

Vi, ao vivo, Carmen, Aida, Don Giovanni, Lohengrin e outras tantas. Foi sem dúvida um traço herdado daqueles dias, daquelas peças de tempo que foram ao mesmo tempo pequenas e gigantes no quebra-cabeças da minha infância.

Mesmo sendo clara a origem do meu gosto por óperas, eu nunca havia convidado meu pai para assistir comigo.

Ele é caseiro e eu, como caseira que também sou, gosto de respeitar esse traço de personalidade nas pessoas. Não tem nada pior para um caseiro do que sentir-se chantageado pelo laço de sangue ou de amizade a sair de casa. É uma sinuca de bico injusta, veja bem, e eu não quero ter parte nesse tipo de tortura. 

Mas, olhando o programa do Theatro São Pedro para 2025, algo chamou minha atenção e me fez violar minha própria ética: "Barbeiro de Sevilha" estava em cartaz e seria encenado dali uns meses.

Era algo nosso, tão nosso, que eu, quando vi, convidei meu pai para ir comigo.

Ele aceitou de imediato. Apesar de ele ter três filhos, só eu passei a infância assistindo aquela ópera com ele, ou melhor, a aria do factotum (antes de capotar no seu colo). Ele sabia, assim como eu, que era algo que significava muito para os dois.

No dia, ele me buscou. Fomos juntos. Como de costume quando se trata de nós, entramos no teatro com apenas 1 minuto de antecedência. Sentamos. 

Uma voz anunciou: bem-vindos ao Theatro São Pedro para assistir “O Barbeiro de Sevilha”, de...

Engraçado, o nome do compositor parecia diferente. Mas até aí eu não lembrava o nome do compositor (minha memória falha com frequência inoportuna). Não havia libreto físico para consultar, e, o que não tem remédio, remediado está. O nome era o de menos. Importava o momento. Importava a aria do factotum.

Primeiro ato. Abertura. Abrem as cortinas. Nada de factotum. Uhm, eu devo ter uma memória diferente da ordem das coisas. Vai ver assistia outra parte com ele...

Primeiro intervalo, nada de factotum no ato inteiro. 

Ouvi uma família comentar a ópera e um dizia “lógico que é uma ópera mais bobinha. É de 1770”. 

Eu não estranhei. Nunca pesquisei sobre quando foi lançado o Barbeiro de Sevilha. Tomamos um café, compramos uma água. Retornamos ao assento.

Comento com meu pai: “eu devia dormir no primeiro ato inteiro, porque não lembro nada antes do factótum”. Ele sorri, da mesma forma que uma mulher sentada na cadeira ao meu lado. Ela foi discreta, mas eu vi o sorriso dela. Na hora, fiquei feliz. 

Ela devia estar reconhecendo que aquele era um momento especial entre pai e filha e pensando “que bonitinho”.

Segundo ato. Abertura. Abrem as cortinas. Nada de factotum.  

Acaba o segundo ato. O elenco agradece. Fecham as cortinas. Ué, acabou? 

Olho para o meu pai. Ele está aplaudindo em pé, com um misto de alegria e confusão. A ópera merecia ovação em pé, mas... cadê a aria do factotum?

Saímos pensando que tínhamos perdido o primeiro ato. Encontramos o libreto digital, olhamos, mas não resolvemos nossa dúvida. Andamos até o carro confusos, beirando o descontentamento.

Era injusto com os cantores, o cenógrafo, o diretor, a regente, a orquestra, enfim... com toda a produção, dizer que não havia sido de altíssima qualidade. Mas a ausência da área do factotum pareceu um corte inexplicável que deixou uma lacuna não apenas na ópera, mas no nosso momento saudosista. 

Pesquisei na internet: chegamos no horário correto. Não perdemos nada da encenação. Teria sido uma opção retirar o factotum? De quem?!? Queremos nomes!

Mas então, o choque de erudição que meu cérebro precisava: descobri que não existe apenas um Figaro no histórico de óperas. Existe o Fígaro de Rossini, o que se proclama o factótum dela città logo no início do primeiro ato e o Figaro de Paisiello, que veio antes, mas que não canta a aria.

E nós, por culpa da minha ignorância, assistimos no Theatro São Pedro ao Figaro de Paisiello.

Rimos muito da confusão, perdoamos com arrogância a produção (como se a culpa tivesse sido deles), e aí me dei conta de duas coisas.

Primeira: a ignorância é realmente uma benção, quando inocente. Se eu soubesse que havia mais de uma ópera com o mesmo nome, não teria quebrado nosso ciclo vicioso de ausência pai e filha. Se eu tivesse percebido o erro no início ou com o sorriso da minha vizinha de camarote, talvez assistisse à ópera frustrada. Na ausência desta consciência, a encenação foi apreciada como tinha de ser: sem projeções do meu estado de espírito sobre ela.

Mas a segunda descoberta foi ainda mais importante: meu pai também dormia depois da aria do factotum, porque em momento algum durante os dois atos que assistimos ele notou qualquer diferença entre a ópera de Paisiello e a de Rossini, salvo, é claro, a ausência do famoso “Fiiiigaro”. 

Resumo da ópera: eu e meu pai, hoje, somos ligados por três coisas: o factotum; o Barbeiro de Sevilha e sono incontrolável que vinha logo após a primeira aria.


Na Ópera...


Notas: 

1- "O barbeiro de Sevilha, ou a Precaução Inútil" integra a "Trilogia de Figaro",  escrita pelo dramaturgo Pierre Beaumarchais, encenada em 1775, na Comédie Française, no Palácio das Tulherias. 

Em 1782, Giovanni Paisiello compôs e apresentou a Ópera "O Barbeiro de Sevilha", baseada na primeira parte da trilogia, que obteve grande sucesso. Foi esta  obra de Paisello a Ópera assistida na crônica em questão.

A trilogia de Beaumarchais também inspirou a Ópera "As Bodas de Figaro", composta e apresentada por Mozart, em 1786, baseada  na segunda parte da trilogia. Décadas depois, em 1816, Rossini lançou sua versão do "Barbeiro de Sevilha" - que contém a famosa ária do factotum, "não encontrada" na crônica.   

2- Para assistir ao belo espetáculo produzido no Theatro São Pedro, acesse https://youtu.be/lpm3ECWq5Bk?si=7W_-FsnwB4pNKck8




*Fernanda Pinheiro é o  nome literário de Fernanda Cristina Uip Pinheiro Pedro, advogada, fotógrafa, pianista e tutora de dois cães e três adoráveis gatos. 



Um comentário:

  1. Antonio Fernando Pinheiro Pedro10 de junho de 2025 às 13:26

    Uma crônica leve e recheada de carinho. Parabéns, Fê Pinheiro!

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