Páginas

sexta-feira, 21 de abril de 2023

O mundo além da Ucrânia


A sobrevivência do Ocidente e as exigências do resto


O tráfego internacional e a atividade econômica medidos em carbono...



NOTA DO THE EAGLE VIEW

O extenso e detalhado artigo a seguir, expressa o mais nítido viés globalista, do conflito geopolítico envolvendo o ocidente, o oriente e os países não alinhados, a partir da crise na Ucrânia e da pandemia. O conteúdo deixa claro que "ocidente", na visão globalista e eurocêntrica, se limita à europa ocidental e américa do norte. O "resto", somos nós e outros. Essa é a perspectiva posta com bastante profundidade pelo autor David Miliband, na análise geopolítica a seguir, cuja leitura recomendo.
( Antonio Fernando Pinheiro Pedro )



Por David Miliband*
(Foreign Affairs - maio/junho de 2023 - publicado em18 de abril de 2023)**




“A Ucrânia uniu o mundo”, declarou o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky em um discurso no primeiro aniversário do início da guerra com a Rússia. 

Se ao menos isso fosse verdade... 

A guerra certamente uniu o Ocidente, mas deixou o mundo dividido. E essa divisão só aumentará se os países ocidentais não conseguirem resolver suas causas profundas.

A tradicional aliança transatlântica de países europeus e norte-americanos mobilizou-se de forma sem precedentes para um prolongado conflito na Ucrânia. 

A OTAN ofereceu amplo apoio humanitário às pessoas dentro da Ucrânia e aos refugiados ucranianos. E está se preparando para o que será um enorme trabalho de reconstrução após a guerra. 

Porém,  fora da Europa e da América do Norte, a defesa da Ucrânia não é prioridade. 

Poucos governos endossam a descarada invasão russa.  Mas, muitos não se deixam persuadir pela insistência do Ocidente, de que a luta pela liberdade e democracia na Ucrânia também é deles. 

Como disse o presidente francês Emmanuel Macron, na Conferência de Segurança de Munique, em fevereiro: “Estou impressionado com a forma como perdemos a confiança do Sul global”. 

Ele está certo. A convicção ocidental sobre a guerra e sua importância é vista com ceticismo, na melhor das hipóteses, e com desdém absoluto, na pior.

A lacuna entre o Ocidente e o resto vai além dos erros e acertos da guerra. Ao invés, é produto de profunda frustração, de raiva.  Na verdade, advinda da má administração da globalização, liderada pelo Ocidente desde o fim da Guerra Fria. 

Visto desta perspectiva, a resposta ocidental à invasão russa da Ucrânia, colocou em relevo as ocasiões em que o mesmo Ocidente violou suas próprias regras ou foi visivelmente omisso na resolução de problemas globais. 

Tais argumentos podem parecer irrelevantes à luz da brutalidade diária praticada pelas forças russas na Ucrânia. Mas os líderes ocidentais não devem rejeitá-los. O abismo nas perspectivas é perigoso para um mundo que enfrenta enormes riscos globais. 

Esse abismo ameaça a renovação de uma ordem baseada em regras e que reflete um novo equilíbrio de poder multipolar no mundo.


O OESTE DISTANTE DO RESTO

A invasão russa produziu notável unidade e ação do mundo democrático liberal. 

Os países ocidentais coordenaram uma extensa lista de sanções econômicas contra a Rússia. 

Os estados europeus têm alinhado cada vez mais suas políticas climáticas de descarbonização a compromissos relacionados à segurança nacional, para acabar com sua dependência do petróleo e gás russos. 

Os governos ocidentais se uniram para apoiar a Ucrânia com enormes remessas de ajuda militar. A Finlândia e a Suécia pretendem ser admitidas em breve na OTAN. E a Europa adotou uma política de boas-vindas aos oito milhões de refugiados ucranianos dentro de suas fronteiras. 

Todos esses esforços foram defendidos por um governo dos EUA que tem se firmado em parcerias com aliados europeus e outros. 

As disputas sobre o Afeganistão e a parceria de segurança AUKUS (um acordo de 2021 fechado pela Austrália, Reino Unido e Estados Unidos - que irritou a França), parecem ter ocorrido há muito tempo.

Muitos no Ocidente ficaram surpresos com essa reviravolta. Claramente, o mesmo aconteceu com o Kremlin, que imaginou que sua invasão não provocaria uma resposta ocidental forte e determinada. 

No entanto, a unidade e o compromisso do Ocidente não encontram respaldo em nenhum outro lugar. 

No início da guerra, a Assembleia Geral da ONU votou 141 a 5, com 47 ausências ou abstenções, para condenar a invasão russa. Mas esse resultado, lisonjeiro, é enganoso. 

Como observou a equipe de analistas do International Crisis Group: “A maioria dos países não europeus, que votaram para deplorar a agressão da Rússia em março passado, não seguiu com sanções. Fazer a coisa certa, na ONU, pode ser um álibi para não fazer muito, sobre a guerra, no mundo real.”

Em uma série de votações da ONU, desde o início da guerra, cerca de 40 países, representando quase 50% da população mundial, regularmente se abstiveram ou votaram contra as moções que condenavam a invasão russa. Cinquenta e oito países se abstiveram de uma votação, em abril de 2022, para expulsar a Rússia do Conselho de Direitos Humanos da ONU. 

De acordo com a Economist Intelligence Unit, dois terços da população mundial vivem em países que são oficialmente neutros ou apoiam a Rússia. Esses países não formam uma espécie de eixo de autocracia; eles incluem várias democracias notáveis, como Brasil, Índia, Indonésia e África do Sul.

Grande parte do silêncio não é motivado por divergências sobre o conflito na Ucrânia, mas sintoma de uma síndrome mais ampla: raiva diante da percepção de padrões duplos ocidentais e frustração com os esforços de reforma, paralisados ​​no sistema internacional. 

O ilustre diplomata indiano Shivshankar Menon enfatizou a questão em Relações Exteriores no início deste ano, quando escreveu: “Alienados e ressentidos, muitos países em desenvolvimento veem a guerra na Ucrânia, e a rivalidade do Ocidente com a China, como uma distração de questões urgentes - como dívida, mudança climática e os efeitos da pandemia.”


EM CIMA DO MURO

A Realpolitik desempenhou seu papel na determinação das posições de alguns países sobre o conflito na Ucrânia. 

A Índia tem sido tradicionalmente dependente da Rússia para suprimentos militares. A empresa paramilitar Wagner – organização mercenária russa, agora ativa na Ucrânia, trabalhou no apoio a governos na África Ocidental e Central, garantindo sua segurança e sobrevivência.  Já a China, que é uma das principais fontes de apoio da Rússia, é o maior parceiro comercial de mais de 120 países ao redor do mundo, e tem se mostrado implacável com as ofensas diplomáticas.

Mas também há outros fatores. 

Alguns países contestam a narrativa ocidental sobre as causas da guerra. 

O Brasil, por exemplo. Embora o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva tenha descrito a invasão como um “erro”, ele também deu crédito ao argumento de que a Rússia foi prejudicada. “Zelensky é tão responsável quanto Putin pela guerra”, afirmou Lula no verão passado em uma declaração que destacou a ambivalência global sobre o conflito.

A guerra uniu o Ocidente, mas deixou o mundo dividido.

Muitos observadores fora do Ocidente também percebem que a impunidade é, em geral, domínio de todos os países fortes, não apenas da Rússia. 

Os Estados Unidos estão em uma posição especialmente fraca para defender as normas globais após a presidência de Donald Trump - que  desprezou regras e práticas globais em áreas tão diversas como clima, direitos humanos e não proliferação nuclear. 

Os críticos apontam para as guerras lideradas pelos Estados Unidos, no Afeganistão e no Iraque, para afirmar que a hipocrisia, e não os princípios, está dirigindo o Ocidente. 

O apoio dos EUA à guerra da coalizão, liderada pela Arábia Saudita no Iêmen, que gerou uma crise humanitária neste país, é apresentada como evidência de duplo discurso quando se trata de preocupação com os civis. 

Também se argumenta que o Ocidente demonstrou muito mais compaixão pelas vítimas da guerra na Ucrânia do que pelas vítimas de guerras em outros lugares. O apelo da ONU por ajuda humanitária para a Ucrânia foi financiado de 80 a 90 por cento. Enquanto isso, os apelos da ONU em 2022, para pessoas imersas em crises na Etiópia, Síria e Iêmen, mal foram financiados pela metade.

Por si só, algumas dessas razões para ficar de fora podem parecer mesquinhas para os ucranianos que lutam na linha de frente. Mas a cautela em apoiar a Ucrânia não deve obscurecer um problema maior: O Ocidente falhou desde a crise financeira de 2008. Falhou em mostrar que está disposto ou capaz de promover uma barganha econômica global mais igualitária e sustentável, ou desenvolver as instituições políticas apropriadas para administrar um mundo multipolar. 

Esta falha agora está voltando para casa, para se empoleirar. Mesmo antes da pandemia de COVID-19, por exemplo, o mundo estava totalmente fora do caminho para atingir os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU - que os estados membros estabeleceram com grande alarde em 2015. 

Em 2018, quatro em cada cinco estados frágeis e assolados por conflitos estavam falhando sobre as medidas dos ODS. 

Os números do Banco Mundial de 2020, mostram que as pessoas nascidas nesses lugares carentes, tinham dez vezes mais chances de acabar pobres que as nascidas em países estáveis, e a diferença estava aumentando. Desde então, como resultado de conflitos prolongados, da crise climática e da pandemia, as grades de proteção caíram completamente. 

Atualmente, mais de 100 milhões de pessoas estão fugindo de guerras ou desastres para salvar suas vidas. A ONU informa que 350 milhões de pessoas hoje estão em necessidade humanitária, em comparação com 81 milhões de pessoas há dez anos. 

Mais de 600 milhões de africanos não têm acesso à eletricidade. O Programa de Desenvolvimento da ONU relata que 25 países em desenvolvimento estão gastando mais de 20% das receitas do governo no serviço da dívida, com 54 países sofrendo de graves problemas de dívida. 

O acesso desigual às vacinas para combater a pandemia - um abismo especialmente evidente durante as fases iniciais da vacinação em 2021 - tornou-se um ícone de promessas vazias.

Os governos ocidentais também falharam nos seus compromissos em outras áreas. 

O Fundo de Adaptação Climática da ONU, estabelecido em 2001 para proteger os países pobres das consequências das emissões de carbono dos países ricos, ainda não cumpriu seu compromisso inicial de arrecadar US$ 100 bilhões por ano e é visto como símbolo da má-fé ocidental: conversa fiada. 

Os longos atrasos na elaboração do instituto, alimentaram a demanda por um novo fundo para cobrir “perdas e danos” decorrentes da crise climática. Este novo fundo foi inaugurado no ano passado, mas ainda não foi, igualmente, financiado. 

Mais outra iniciativa global subfinanciada, só  aprofundará o déficit de confiança entre países ricos e pobres.


SOLIDARIEDADE ÔCA

Se as próximas duas décadas forem como as duas últimas, marcadas pelas prioridades confusas e promessas fracassadas do Ocidente, a multipolaridade no sistema global significará mais que mera competição econômica. Significará desafios ideológicos e questionamentos reforçados  aos princípios dos países ocidentais. Representará o enfraquecimento da associação e da cooperação dos países não ocidentais com o Ocidente. 

Em vez disso, os países democráticos liberais, que apoiam um sistema global baseado em regras, precisam pensar e agir com propósito estratégico de longo prazo, isso enquanto se envolvem com o resto do mundo. É o que a China tem feito desde 1990.

O hard power em termos de parcerias militares e cooperação comercial será crítico para determinar as relações do Ocidente com o resto do mundo. 

Porém, os governos ocidentais precisam atender a uma série de questões relativas ao soft power, principalmente em três áreas: compromissos de solidariedade e equidade na gestão de riscos globais, reformas que ampliem o leque de vozes à mesa nos assuntos internacionais e narrativa vencedora - numa época em que a democracia está em retrocesso. 

Essas ações não apenas ajudariam a sustentar a posição global do Ocidente; são também a coisa certa a fazer.

O apelo por mais solidariedade e equidade na gestão dos riscos globais é fundamental para o momento atual. A competição entre grandes potências está exacerbando os desafios globais em detrimento extremo dos países mais pobres. 

A crise alimentar decorrente da guerra na Ucrânia e a resposta global inadequada a ela são apenas um exemplo. 

Essa tendência torna especialmente importantes os esforços do Center for Global Development para aplicar uma lente de “bens públicos globais” ao desenvolvimento internacional. Esses produtos incluem programas para reduzir o risco de pandemias, mitigar a mudança climática, abordar a resistência antimicrobiana, combater o terrorismo não estatal e crimes cibernéticos. 

O investimento para evitar essas ameaças iminentes, no entanto, sofre de uma falha de mercado: como todas as pessoas se beneficiam, e não apenas quem paga... ninguém paga. 

De acordo com a CGD, cerca de seis por cento do orçamento total do Departamento de Estado dos EUA, na última década, foi para bens públicos globais relevantes para o desenvolvimento, e essa proporção não parece ter aumentado ao longo do tempo.

As pandemias são um bom exemplo. 

Em 2022, o Painel Independente de Preparação e Resposta a Pandemias, que a Assembleia Mundial da Saúde pediu à Organização Mundial da Saúde (OMS), para estabelecer - e no qual servi, publicou uma revisão abrangente das ações globais que seriam necessárias para prevenir e mitigar futuras pandemias. O relatório estimou que o custo financeiro da prevenção da pandemia seria de US$ 15 bilhões por ano - menos da metade do que os americanos gastam com pizza, todos os anos.

A revelação mais chocante foi que 11 painéis e comissões de alto nível, em 16 relatórios nos 20 anos anteriores, fizeram recomendações sensatas sobre como se preparar, detectar e conter pandemias. Mas a maioria das recomendações não foi implementada. 

A conclusão do Painel Independente foi que esse problema só poderia ser superado encorajando os líderes a mobilizar um compromisso sustentado de todo o governo com a preparação para uma pandemia. Sugerimos nesse sentido a criação de um Conselho Global de Ameaças à Saúde, separado da OMS (porque as pandemias não são apenas uma questão de saúde), com a missão de garantir que os governos se preparem suficientemente para as pandemias, seja por meio de sistemas de vigilância eficazes ou pelo disparo oportuno de alarmes sobre surtos. Esta proposta não deve acumular poeira.

O apoio aos refugiados apresenta mais um exemplo de como os custos globais são compartilhados de forma desigual. 

Embora muitos países ocidentais lamentem o influxo de refugiados, os países pobres e de renda média baixa acolhem mais de 80% deles. 

Bangladesh, Etiópia, Jordânia, Quênia, Líbano, Paquistão, Turquia e Uganda recebem um grande número de refugiados. A Polônia, que atualmente abriga mais de 1,6 milhão de ucranianos, e a Alemanha, com 1,5 milhão de sírios, são exceções entre os países ricos. 

Os países pobres e de renda média baixa recebem recompensa limitada dos países mais ricos pelas responsabilidades que assumem. Portanto, têm incentivo limitado para promulgar políticas que promovam a inclusão de refugiados no trabalho, educação e sistemas de saúde.

Os países pobres e de renda média baixa acolhem mais de 80% dos refugiados.

Duas iniciativas do Banco Mundial refletem a disposição de abordar as preocupações dos países em desenvolvimento, que hospedam um grande número de refugiados. No entanto, precisam ser ampliadas significativamente. 

O programa "Janela Para Comunidades Anfitriãs e Refugiados" promete apoiar intervenções significativas de médio a longo prazo, que apoiem países de baixa renda que hospedam refugiados. 

Setenta e sete por cento dos fundos da WHR foram destinados a países africanos. Mas o programa precisa de mais recursos; precisa ser expandido para incluir outros bancos multilaterais de desenvolvimento, como o Banco Africano de Desenvolvimento e o Banco Islâmico de Desenvolvimento. Precisa também se tornar mais eficaz, através da coordenação com fontes bilaterais de ajuda. 

Outra iniciativa do Banco Mundial, o Global Concessional Financing Facility, inclui outros bancos multilaterais de desenvolvimento e apóia países de renda média que acolhem refugiados (por exemplo, o Banco Mundial alocou US$ 1,6 bilhão para a Colômbia - para ajudar em seus esforços com os refugiados venezuelanos). 

Mas as contribuições para o fundo são ad hoc e não podem atender às necessidades dos países anfitriões.

A crise climática é o risco global que mais se agiganta e apresenta o maior teste à sinceridade da solidariedade dos países ocidentais com o resto do mundo. 

Os países ricos precisam gastar trilhões de dólares para descarbonizar suas economias, mas também precisam apoiar o desenvolvimento de baixo carbono nos países pobres, e pagar pelos custos inevitáveis ​​de adaptação às mudanças climáticas - já anunciadas pelos níveis atuais de aquecimento global.

A nomeação de um novo diretor administrativo do Banco Mundial, nas reuniões da primavera de 2023 é, portanto, da maior importância. 

Como escreveu o ex-secretário do Tesouro dos EUA, Larry Summers, “há uma necessidade urgente de os EUA e seus aliados reconquistarem a confiança do mundo em desenvolvimento. Não há melhor meio de reconquistar a confiança do que através da provisão coletiva de apoio em larga escala para as maiores prioridades dos países. E não há maneira mais rápida e eficaz de mobilizar apoio que por meio do Banco Mundial.”

A nova liderança do Banco Mundial precisará compensar o tempo perdido. Segundo o analista Charles Kenny, as contribuições do banco como proporção da renda nacional bruta dos países mutuários caíram de 4,0% em 1987 para 0,7% em 2020. 

O Banco Mundial pode e deve fazer mais. Sua abordagem muito conservadora do risco, sua gama muito limitada de parceiros (não-governamentais e governamentais), e sua cultura e modus operandi, precisam ser o foco da reforma, juntamente com as propostas de novos financiamentos, como a da da Agenda Bridgetown, da primeira-ministra barbadiana Mia Mottley, que apela para uma nova e importante mobilização de fundos internacionais para os países que lutam contra as alterações climáticas e a pobreza.


UM ASSENTO À MESA

Além de criar uma maneira mais equitativa de lidar com os riscos globais, os países ocidentais precisam aceitar as demandas dos países em desenvolvimento para ter mais voz na arena internacional. 

Muitos países se ressentem da natureza desequilibrada do poder global nas instituições internacionais de hoje. Um exemplo recente ocorreu durante a pandemia. O "Access to COVID-19 Tools Accelerator", da OMS, foi uma importante iniciativa destinada a impulsionar o acesso global a vacinas, tratamentos e diagnósticos. Mas representantes de países de baixa e média renda não foram incluídos de forma significativa na governança do programa. Essa falta de representação dificultou os esforços para alcançar a distribuição justa de vacinas e a prestação efetiva de outros serviços de saúde.

O caso do veto do Conselho de Segurança da ONU, no ápice do sistema internacional, fornece uma lente útil para pensar sobre como todas as instituições internacionais precisam reequilibrar a maneira como trabalham, para reconhecer as realidades do poder moderno. 

Atualmente, os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança – China, França, Rússia, Reino Unido e Estados Unidos – têm o direito de vetar qualquer resolução, deixando de lado os outros dez membros, muitos dos quais são de baixa renda e países de renda média.

Uma reforma fundamental que mudaria o número de estados com poder de veto no conselho parece improvável. Mas os conflitos em andamento na Etiópia, Síria, Ucrânia e Iêmen fornecem exemplos reveladores de como a impunidade reina quando o Conselho de Segurança é paralisado pelo veto ou pela ameaça de usá-lo. Sinal da frustração em relação a esse tema é a “iniciativa do veto”, aprovada pela Assembleia Geral da ONU em 2022, que exige que o uso do veto no Conselho de Segurança provoque a Assembleia Geral automaticamente, convocada para discutir o assunto em questão. 

Além disso, mais de 100 países assinaram uma proposta francesa e mexicana, que apoio, que exige que os membros permanentes do Conselho de Segurança concordem em não usar  veto em casos de atrocidades em massa. Alguns membros permanentes já estão exercendo moderação.

A proposta prevê que o secretário-geral da ONU identifique casos que mereçam a suspensão do veto, com base em uma definição clara de “atrocidades em massa”. Tal reforma abriria imediatamente o processo de tomada de decisão no conselho, para incluir de forma mais equitativa as opiniões dos dez membros eleitos, além dos cinco membros permanentes. 

Os Estados Unidos disseram estar preocupados com a potencial politização do processo de identificação de atrocidades. Embora as autoridades americanas estejam compreensivelmente preocupadas com as consequências de desistir do veto (embora em circunstâncias limitadas), os repetidos vetos de Moscou a resoluções sobre a Ucrânia, no ano passado, devem fazer Washington hesitar sobre se tem mais a ganhar ou a perder ao se recusar a considerar limites ao veto.


UM OLHAR NO ESPELHO

Na batalha pela opinião global, a narrativa é importante. 

O enquadramento ocidental preferido da guerra na Ucrânia – como uma disputa entre democracia e autocracia, não ressoou bem fora da Europa e da América do Norte. 

Embora seja verdade que os ucranianos estão lutando por sua democracia (e também por sua soberania), para o resto do mundo a invasão representa uma transgressão fundamental do direito internacional. O mesmo acontece com os ataques militares da Rússia, que têm como alvo civis ucranianos e infraestrutura civil.

Existe uma alternativa melhor. Os governos ocidentais devem enquadrar a guerra como um conflito entre o estado de direito e a impunidade ou entre a lei e a anarquia, em vez de um conflito que opõe a democracia à autocracia. 

Tal abordagem tem muitas vantagens. Localiza corretamente a democracia entre uma variedade de métodos para a promoção da responsabilidade, e a contenção do abuso de poder. Amplia a potencial coalizão de apoio. Testa a China no seu ponto mais fraco, porque a China afirma apoiar um sistema internacional baseado em regras. Também soa menos egoísta - o que é importante, dado os problemas óbvios que afligem muitas democracias liberais. 

Uma coalizão construída em torno da necessidade de regras internacionais tem muito mais probabilidade de ser mais ampla que uma baseada em apelos à democracia.

Para defender o estado de direito, no entanto, os países ocidentais devem respeitá-lo e subscrevê-lo. 

A condenação dos Estados Unidos, das violações chinesas da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar – no que diz respeito às instalações militares da China nas ilhas do Mar da China Meridional, por exemplo – seria muito mais persuasiva se os Estados Unidos ratificassem a convenção. 

Embora a vice-presidente dos EUA, Kamala Harris, tenha feito um apelo poderoso na recente Conferência de Segurança de Munique, para o julgamento de crimes de guerra na Ucrânia, teria sido muito mais eficaz se os Estados Unidos tivessem ratificado o Estatuto de Roma, que criou o Tribunal Penal Internacional em 1998. 

Críticos e adversários das potências ocidentais citam incansavelmente esses padrões duplos. E não é difícil perceber porquê.

Vale a pena perguntar se realmente importa como o resto do mundo se posiciona em relação à Ucrânia. O presidente russo, Vladimir Putin , por exemplo, disse, em um discurso em junho de 2022, que acredita que sim, argumentando que, após a guerra, “novos centros poderosos se formaram no planeta” - uma referência à ascensão de potências como Brasil, China e África do Sul. 

Essas mudanças, afirma Putin, são “fundamentais e cruciais”. Enquanto isso, a China lançou uma série de projetos globais sob a rubrica de sua “Comunidade de Destino Comum, Futuro para a Humanidade”, incluindo o vasto programa de investimento em infraestrutura, conhecido como "Iniciativa do Cinturão e Rota da Seda", que reflete a mudança da ordem global.

No entanto, o presidente dos EUA, Joe Biden, passou menos de três minutos discutindo o mundo além da Ucrânia, em seu discurso sobre o Estado da União, em fevereiro, que durou mais de uma hora.  Foi uma lacuna notável, dado o histórico respeitável de seu governo: mais de 90% da ajuda humanitária destinada à Somália, por exemplo, vem atualmente dos Estados Unidos. 

Uma agenda focada em cortejar o resto do mundo, tem pouca força doméstica. Claro que não é lá que estão os votos. 

Mas outros países também têm votos – não nas eleições americanas, mas em como os interesses americanos são percebidos e promovidos em todo o mundo. 

No caso da Ucrânia, a economia da Rússia foi sustentada, apesar das sanções ocidentais, pela expansão do comércio com o mundo não-ocidental - novas alianças energéticas e novas fontes de suprimentos de armas. Esses laços importam.

Como entidade geopolítica, o Ocidente continua sendo um ator poderoso e influente, ainda mais com sua nova unidade. 

Certamente, as parcelas relativas da renda global entre os países ocidentais serão menores no século XXI do que eram no século XX. Mas a renda per capita nos países ocidentais continua alta para os padrões globais. A força militar e diplomática do Ocidente é real. 

Fato: os sistemas alternativos à democracia são repressivos e pouco atraentes.

Ao mesmo tempo, as demandas de vários países por um novo acordo em nível internacional são, em muitos casos, razoáveis. Abordá-los com urgência e de boa fé é essencial para construir uma ordem global que seja satisfatória para os estados democráticos liberais e seus cidadãos. 

A guerra na Ucrânia permitiu ao Ocidente redescobrir sua força e senso de propósito. Mas o conflito também deve ajudar os governos ocidentais a enfrentar suas fraquezas e erros.




* DAVID MILIBAND é Presidente e CEO do International Rescue Committee. De 2007 a 2010, atuou como Secretário de Estado para Assuntos Estrangeiros e da Commonwealth do Reino Unido.


** URL da página
https://www.foreignaffairs.com/ukraine/world-beyond-ukraine-russia-west



Nenhum comentário:

Postar um comentário

Seja membro do Blog!. Seus comentários e críticas são importantes. Diga quem é você e, se puder, registre seu e-mail. Termos ofensivos e agressões não serão admitidos. Obrigado.

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.