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quarta-feira, 18 de novembro de 2020

ARBÍTRIO E DESTEMPERO STALINISTA CONTRA OSWALDO EUSTÁQUIO

Quando o Estado dispensa a tutela do livre debate das ideias para reprimir desproporcionalmente o cidadão que as emite, a democracia corre perigo


Eustáquio, preso em casa, sem emprego, sem mídia, desconectado das redes...



Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro


A Polícia Federal prendeu o jornalista bolsonarista Oswaldo Eustáquio, por ordem do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes. Em sua decisão, Moraes apontou que Eustáquio descumpriu medidas cautelares determinadas pelo STF à época de sua primeira prisão no inquérito sobre atos antidemocráticos, como a proibição de deixar Brasília sem autorização judicial e de usar redes sociais.

A PF também cumpriu busca e apreensão na sua residência, com o objetivo de apreender aparelhos eletrônicos usados por Eustáquio, pela terceira vez.

Eustáquio foi levado à Superintendência da PF em Brasília para que seja colocada nele tornozeleira eletrônica.

Nas últimas semanas, Eustáquio atuou em favor de Celso Russomanno (Republicanos) na campanha pela Prefeitura de São Paulo e divulgou um vídeo com acusações ao candidato do PSOL Guilherme Boulos. O vídeo foi retirado do ar por ordem da Justiça Eleitoral, que entendeu se tratar de notícias falsas.

"Impedido de frequentar as redes sociais, em data recente, o investigado desrespeitou a ordem judicial e foi autor de inúmeras fake news em que imputou crimes a candidato a prefeito da cidade de São Paulo, sendo necessária ordem judicial da 2ª Zona Eleitoral de São Paulo para retirada do conteúdo", escreveu o ministro. 

A PF identificou que o blogueiro viajou à capital paulista e chegou a acompanhar um debate entre candidatos a prefeito, apesar de não ter autorização judicial para deixar Brasília.

Em sua decisão, o ministro Alexandre de Moraes classificou de "gravíssimos" os fatos relacionados à atuação de Oswaldo Eustáquio e afirmou que ele "insiste em descumprir as medidas que lhe foram impostas, em verdadeira afronta ao órgão judiciário e à administração da Justiça".

Eustáquio é investigado pelo STF sob suspeita de auxiliar a organizar e realizar atos contra as instituições democráticas. Por isso, em junho ele chegou a ser preso pela Polícia Federal por ordem do ministro Alexandre de Moraes.

Não concordo em nada com o Oswaldo Eustáquio. No entanto, defendo até o fim o direito dele publicar suas reportagens e expressar suas opiniões - doa a quem doer.

O Supremo iniciou um procedimento investigatório de maneira absolutamente torta, visando  censurar uma matéria da mídia "Crusoé" aparentemente "desabonadora" à figura de alguns de seus ministros. No decorrer da dita "persecução", o sodalício mudou de rumo ao esbarrar com uma complexa articulação com       alto grau de letalidade para a Ordem Democrática no Brasil*.   A partir daí, o que parecia ser um inquérito arbitrário, encontrou ocasional legitimidade institucional para prosseguir no desbaratamento de uma aparente conspiração digital  contra a República. 

No entanto, a pústula do arbítrio remanesce, e volta a eivar o procedimento na medida em que este desbordou da apuração objetiva do tal conluio para uma abusiva  perseguição ao jornalista,  que emitira opiniões que feriam a vaidade pessoal das autoridades interessadas na investigação. 

É muito fácil identificar quando atos processuais desbordam o campo da normalidade para adentrar no campo do arbítrio, que caracteriza a  chamada guerra legal - lawfare -  encetada pelo Estado contra um cidadão e suas ideias. 

São sintomáticos da lawfare: 

1- a desconsideração das formas processuais (que, nas democracias, funcionam como uma garantia contra o arbítrio);

2- o "vazamento" midiático de conteúdos sigilosos do processo penal, potencializando o assédio ilegítimo contra o acusado, familiares e aliados;

3- A violação reiterada dos direitos do imputado, tais como o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório;

4- a súbita e atípica rapidez (geralmente coordenada com um fato político ou calendário eleitoral) conferida à análise ou ao julgamento de uma imputação;

5- a existência de sinais de parcialidade do julgador, tais como a confusão entre persecução e  tutela ou adoção de medidas cautelares com intuito claro de reduzir a capacidade de defesa processual do imputado, etc; 

6- a produção e valoração de provas em desconformidade com os limites jurídicos, éticos e epistemológicos.

Nos últimos anos, o número de casos de lawfare apresentou  notável crescimento em todo mundo. Isso se deve, basicamente à vulgarização dos conflitos assimétricos decorrente da polarização política e à inserção de posturas ideologicamente incompatíveis com os regimes democráticos, nos estamentos governamentais, a pretexto de "equilibrar" assimetrias. 

Um exemplo desse fenômeno - carregado de contradições e paradoxos, é o chamado combate às fake news.

O termo "fake news", quando transportado do vocabulário jornalístico para ser  tratado como componente de judicialização da liberdade de expressão - transforma-se em veneno da liberdade e elemento condutor da chamada espiral do silêncio. 

Espiral do silêncio foi constatada por Elisabeth Noelle-Neumann, nos anos 1970, e consiste num processo de constrangimentos impostos pelo estamento dominante visando manter padrões culturais e comportamentais que inibam os indivíduos a emitir opiniões discordantes - adotando o silêncio pelo temor do isolamento, da crítica, da estigmatização e da ruína. 

Assim, a subjetividade contida no uso da expressão fake news, torna a liberdade de imprensa refém do "duplipensar" orwelliano -  que no Brasil parece ter saído da ficção da obra "1984", para integrar a realidade do Supremo Tribunal Federal.

Nossa suprema judicatura é responsável por manter uma aberração procedimental  cujo destino será o lixo da história:  um inquérito promovido pelo mesmo órgão que decide o que ali irá se inquirir. Tão somente esse fato já bastaria para caracterizar a geração de togados ali oficiante a pior composição de toda a história do Judiciário brasileiro.  

Durante a investigação, a Procuradoria-Geral da República argumentou ao Supremo que Oswaldo Eustáquio defendera uma “ruptura institucional de maneira oblíqua” - algo digno da novilíngua instituída para um ministério da verdade orwelliano - passível de constar numa obra de ficção, mas digno de reprovação numa arguição perante uma banca examinadora de exame de ordem...

Porém, o lixo político não para aí. 

A necessidade perversa, mesquinha, desprezível e imoral, expressa por atos e decisões nada "oblíquas", de massacrar materialmente o jornalista, empastelando sua mídia, recolhendo seus instrumentos de trabalho, suprimindo sua página remunerada nas redes sociais, privando seus filhos de possuírem dispositivos para acompanhar as aulas, proibindo-o de ganhar o seu pão e perseguindo a família dele a ponto de fazer a esposa perder o emprego... revela muito mais dos agentes, encarregados de decidir e cumprir essas aberrações travestidas de atos judiciais, que eventual delito de opinião ao jornalista imputado.

Aliás, "delito de opinião" já é figura incompatível com qualquer democracia. Quando o Estado dispensa a tutela do livre debate das ideias para reprimir desproporcionalmente o cidadão que as emite... a democracia corre perigo. 

Esse lixo persecutório - com caráter stalinista, revela o nível de mediocridade instalado na cúpula do Poder Judiciário Nacional.

Revela também outra coisa, sintomática: medo.

Já me manifestei várias vezes contra a baderna bolsonarista e sua nocividade para a democracia brasileira. Compreendo inclusive que desobediência à ordem legal não pode ficar impune.  

No entanto, o comportamento desproporcional e desprezível, inserido na inquisição promovida no STF contra um indivíduo - sem qualquer ganho para o objetivo maior de combater uma trama antidemocrática, é muito mais nociva e danosa ao Estado de Direito que a nocividade própria à atuação do cidadão em causa.

Oswaldo Eustáquio optou pela fórmula da provocação engajada. Não é o único, há militantes e jornalistas que agem dessa forma à esquerda e á direita. Ofensas pessoais devem ser tratadas no campo civil e penal, pelos atingidos, sob a tutela da lei. Se foi tumultuar a campanha de candidato, fora do seu limite judicialmente estabelecido pelas medidas de restrição a ele impostas - que seja sancionado. Mas o problema, no caso, é maior e mais amplo que isso. 

O bolsonarista Oswaldo Eustáquio, com todas as implicações advindas dessa militância, torna-se menor ante o jornalista Oswaldo Eustáquio, perseguido por opinar  e atuar no pressuposto da liberdade de imprensa.  Este deve ser protegido.

Devemos, todos nós, que prezam e defendem a liberdade de imprensa, o direito à livre opinião política e o respeito aos direitos de expressão da cidadania, trabalhar para que esse caso ganhe a devida notoriedade, pois será a transparência o melhor remédio contra o arbítrio, a covardia e o abuso.

O tempo, ao seu tempo, revelará a verdade e saberá dispor dos personagens no devido lugar a eles reservado na história.


Para saber mais sobre o contexto da coisa: 

*PEDRO, Antonio Fernando Pinheiro - "O Caos Sem Nova Ordem - e Agora?", in Blog "The Eagle View", 27Maio2020, in https://www.theeagleview.com.br/2020/05/o-caos-sem-nova-ordem-e-agora.html 








Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio do escritório Pinheiro Pedro Advogados.  Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB e Vice-Presidente da Associação Paulista de Imprensa - API.  É Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal e responsável pelo blog The Eagle View". 













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