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sexta-feira, 29 de maio de 2020

A GESTÃO AMBIENTAL DA PANDEMIA

A Covid-19 é em si mesma uma degradação ambiental, cujos impactos já estão alterando o meio em que vivemos


Veneza, com água cristalina durante a quarentena



Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro



Nos pergunta o querido professor Vladimir Passos de Freitas: 

Alguém tem dados concretos, alguma pesquisa, artigo de autor respeitado, algo concreto que vincule a COVID-19 à degradação ambiental?  Estou estudando o assunto e até agora só vi generalidades, citações de artigos da Constituição, coisas que não merecem a mínima credibilidade. Agradeço a colaboração.

A questão merece mesmo uma resposta, pois a impressão que tenho lendo o que me passou pelos olhos, é a mesma dele. 

Vamos lá: 


A COVID É UMA DEGRADAÇÃO AMBIENTAL 

A pandemia é virótica. No entanto, a disseminação é humana.

Isso envolve responsabilidades ambientais claras, decorrentes da degradação causada pela doença.  Os impactos, no entanto transcendem a saúde para refletirem-se na economia, na política, na cultura urbana e no controle da poluição, senão vejamos: 

A doença  evoluiu do meio animal para atingir os seres humanos e já há histórico de contaminação dos humanos para animais domésticos - portanto, ela completa um ciclo com ativa participação humana. 

De fato, o coronavírus possui impressionante periculosidade; ele "aprende" com o organismo. Basta ver que o vírus, antes um hospede no sistema pulmonar, já viralizou para o sistema linfático, hospedando-se no sangue e, agora, já foi localizado também nas células nervosas. Se antes a doença era algo similar á uma gripe, pode agora deixar sequelas graves nos seres humanos e... parece querer evoluir para uma patologia crônica.

De fato, o Covid - 19 é uma arma biológica da natureza que tem por alvo o ser humano. Mas sua razão de existir está mais ligada à existência da civilização humana no globo terrestre que propriamente à existência de países, interesses econômicos em conflito, comunismo versus capitalismo. Isto porque, tal qual a imbecilidade humana, o vírus não escolhe lado. Se a disseminação do vírus possui raiz nos hábitos de consumo e higiene precária observados me Wuhan, na China, ou se adveio dos laboratórios de pesquisa de Wuhan e Carolina do Norte, nos EUA, o fato é que o debate sobre uma provável guerra biológica - a par de uma guerra comercial, trouxe para o centro do debate geopolítico a atividade de Estado na gestão ambiental integrada envolvendo o controle territorial e a manutenção das soberanias no combate a um vírus. 

Em recente artigo (*), tratei de anotar que o  esforço de se construir entendimentos para impedir o avanço da ciência sobre o uso militar da manipulação dos micro-organismos sofre um paradoxo recorrente. Desde a primeira grande guerra - a começar da terrível gripe espanhola (decorrente de mutações ocasionadas pelo impacto do conflito no território europeu), todo o aparato de pesquisa biomédica e a ação da medicina sanitária e de tratamento de doenças infecto-contagiosas adotou formas, estratégias e culturas de abordagem com design militar. Par e passo com o avanço da tecnologia em geral, a tecnologia militar e biomédica tornaram-se co-irmãs. 

Assim, é  correto afirmar que o avanço das assimetrias e a hibridez reinante nos conflitos modernos, guardam interesse para a biomedicina... e esse fenômeno migra para a gestão ambiental.

É também correto afirmar que os interesses geopolíticos,  conflitos étnicos, religiosos e mesmo comerciais entre grupos, povos e países, somado ao progresso tecnológico e nível de exposição global das pandemias -  otimizadas por conta da moderna logística, tornam o contato com patógenos um elemento a ser obrigatoriamente considerado no planejamento de segurança ambiental dos Estados Nacionais. A ameaça é real e exige gestão ambiental integrada.  

É na organização humana que se dará toda a atividade racional relacionada ao combate á pandemia e ao vírus que a causa.  Portanto, as medidas preventivas e de tratamento médico-hospitalar, bem como as ações exclusivamente científicas voltadas á virologia e infectologia, somam-se às  medidas de combate típicas de controle ambiental - em especial as sanitárias.

O vírus, por princípio legal, não "causa poluição" - pois não é um agente humano. Mas o ser humano é seu vetor global e, portanto, é a razão humana a responsável por sua contenção. Nesse sentido,  a doença e todos os efeitos maléficos por ela causados na população, na segurança e na economia, constituem forma de poluição - causada por omissão ou comissão humana, no combate à ela.

A disseminação do vírus é exponencial.  Neste momento, não há cura.  Os suprimentos médicos são insuficientes para lidar com as ondas cada vez maiores de casos.  As unidades de terapia intensiva estão à beira e além de serem sobrecarregadas.  O teste é inadequado para a tarefa de identificar a extensão da infecção, muito menos reverter sua propagação.  Uma vacina bem-sucedida pode levar de 12 a 18 meses.

Analisando o quadro, Henry Kissinger (**) observa que os governos lidam com a crise decorrente da pandemia, em escala nacional, mas  os efeitos dissolventes da sociedade do vírus não reconhecem fronteiras.  Embora o ataque à saúde humana seja - esperançosamente - temporário, o levante político e econômico que desencadeou pode durar gerações.   Nenhum país pode, em um esforço puramente nacional, superar o vírus.  O atendimento às necessidades do momento deve, em última análise, ser associado a uma visão e programa colaborativos globais.  Ou seja, se não pudermos fazer as duas coisas em conjunto, enfrentaremos o pior de cada uma.

Grandes programas de recuperação social e econômica irão redesenhar  o ambiente afetado pela pandemia, que não será mais o mesmo.  Isso deverá ocorrer em três dimensões: 1- na ciência e na tecnologia médica; 2- na economia; e 3- na ordem política e social. 

Essa tridimensionalidade visa garantir a saúde da população, a segurança, a ordem pública, o bem estar econômico e social e a justiça - razões de ser do Estado de Direito. 

As medidas sanitárias de isolamento social nos levaram de volta á idade das trevas em plena era das luzes. Voltamos às nossas tocas e erigimos cidadelas no auge da globalização.  Isso causou profundo impacto político, no campo dos direitos civis e na organização do trabalho.  Irá impactar também a distribuição das atividades humanas no espaço físico das cidades e alterará toda a logística. 

A interrupção súbita das atividades econômicas, em escala mundial, ocorrida pela adoção dos protocolos de contingência e emergências acordados pela OMS e autoridades de saúde nacionais, resultou em vários impactos no meio ambiente e no clima. 

Com as atenções mundiais voltadas á questão, não faltaram oportunistas dedicados a acelerar a degradação ambiental de sempre. No Brasil, por exemplo, o surto parece estar servindo de cobertura para um desmatamento criminoso  da floresta amazônica. Na África, verificou-se um estímulo à caça predatória.  Tais fenômenos irão dificultar a ação diplomática e gerar profundos impactos no aporte de verbas e de investimento em tecnologias verdes nas regiões afetadas. 

Mas o declínio da economia e a forte redução dos deslocamentos humanos resultou também em queda sensível nos índices de poluição atmosférica e hídrica. A China calculou, até o momento, uma redução de 25% nas emissões de carbono e 50% nas emissões de óxidos de nitrogênio.  Devemos tirar lições disso.

As pessoas perceberam que não precisam se deslocar para exercer determinadas atividades, racionalizaram inclusive sua forma de diálogo e mudaram hábitos de consumo.  As quarentenas mostraram, por outro lado, que a natureza reage fortemente à presença e, também, á ausência humana. A água de Veneza tornou-se cristalina e até mesmo cardumes e caravelas foram vistos nas vias antes  turvas, frequentadas pelas barcarolas.  A Baía da Guanabara também foi "infestada" de vida, por conta da sensível diminuição da carga poluente advinda do tráfego marítimo e descarga de esgoto industrial nas bordas. 

O primeiro impacto sentido foi no próprio design de relacionamento entre as pessoas e destas com o seu meio. O teletrabalho se consolidou com a pandemia - revelando redução de custos com sedes, mobiliário, manutenção, tempo de deslocamento, desburocratização e objetividade no atendimento a demandas. Até mesmo as teleconferências parecem resultar em ganho de tempo e melhor foco nas pautas. Os efeitos ambientais dessa alteração se fazem sentir na enorme redução de emissões de poluentes, economia de energia e aumento de eficiência, algo que com certeza será demonstrado nos próximos meses - incluso no serviço público. 

A retomada das atividades econômicas, portanto, ocorrerá articulada com efetivo controle ambiental. A contaminação do vírus pelas vias aéreas é  potencializada pelo fato dele ser mais resistente que o usual no ambiente e, portanto, permanecer ativo nas superfícies -  Isso levará a todo um redesenho nos hábitos e no trato com tudo o que lidamos usualmente. 

Companhias aéreas sofrerão reengenharia, pois as viagens de negócio irão se reduzir na proporção exata do avanço das teleconferências - no entanto, as cargas deverão sofrer enorme incremento logístico.  O atendimento a domicílio dificilmente será revertido - pelo contrário, irá se desenvolver definitivamente, reduzindo o consumo "in loco"  nos estabelecimentos e centros comerciais.  Os escritórios serão redefinidos. Grandes palácios poderão ser esvaziados. 

Tudo isso impacta profundamente a gestão ambiental - das medidas sanitárias de combate á pandemia ao redesenho social, econômico e arquitetônico posterior a ela. 

Mas vamos começar pelo saneamento do meio.  

Tornou-se óbvio, com a redução temporária das emissões, que a resposta ambiental foi vigorosa o suficiente para estimular uma nova ofensiva em direção á modernização definitiva dos parques industriais, controlando e eliminando fontes de poluição que não mais se justificam. E isso não se dará apenas no "end of pipe" e , sim, por meio do ecodesign. 

Exemplo claro disso está na mobilidade urbana.  A indústria automotiva deverá se dedicar á substituição da frota atual por outra elétrica - movida a células de hidrogênio, ou movida a gás natural liquefeito.  Aliás, a adoção dessas novas rotas - aliada com o reposicionamento da energia nuclear, deverão constituir o centro da atenção das políticas energéticas em curto prazo, mão só no meio automotivo mas em todo o Smart Grid - juntamente com as outras fontes renováveis. 

É patente que o sistema de recuperação energética irá alterar toda a rota tecnológica (ou a falta dela) no território brasileiro, e lá fora também. 

No caso do GNL e Hidrogênio, Ambas as fontes buscarão suas fontes não apenas na extração natural mas também na rota tecnológica da recuperação energética de resíduos, pela extração e pela gaseificação. 

De fato, a recuperação energética na ponta da linha da cadeia de gestão dos resíduos sólidos, e também no tratamento do esgoto sanitário, deverá ser seriamente considerada pelos governos nacionais, ampliando sobremaneira a vida dos aterros sanitários e redefinindo a economia circular. 

Isso afetará o regime de contratos de concessão, não apenas no campo da receita acessória, mas, também , na remuneração da disposição final - pois os aterros poderão receber não pelo que depositam mas pelo que deixarão de receber, com a otimização do destino ambientalmente adequado. 

A integração definitiva da logística reversa com o saneamento básico - em especial a gestão pública dos resíduos sólidos urbanos, será uma obrigação. Basta de "pontos de entrega voluntária" e outras perfumarias!  A legislação terá que introduzir o balanço de massa no controle do fluxo dos materiais, de forma a condicionar a produção á recuperação pós consumo por tonelada de material. Isso obrigará os setores acordados setorialmente a buscarem os resíduos recicláveis nos terminais dos serviços de coleta e destinação municipais - pagando uma taxa por isso.  O resto, deverá seguir para a recuperação energética. 

As tarifações desses serviços, junto aos usuários domiciliares, serão redefinidas com base em equações que envolvam o consumo de água e energia de cada unidade. Já o destino  dos resíduos comerciais e dos grandes geradores (restaurantes, centros comerciais, etc) seguirá com uma taxa de performance, envolvendo também a otimização no  destino do resíduo. Nesse sentido, um bom exemplo é  a compostagem e produção em escala variada de composto orgânico para plantio de hortifrutis já ocorrentes, em forma experimental, em várias regiões da Grande São Paulo - incluso Shoppings Centers, que recolhem o lixo produzido nas praças de alimentação, segregam o reciclável e destinam o  orgânico para processadores que reduzem o tempo de compostagem a menos de uma hora... produzindo um composto que é utilizado para produzir hortaliças consumidas no próprio Shopping. Algumas escolas também já o fazem com sucesso. 

Mas, perguntaria o leitor - onde entra aí a COVID?  Caros, o nível de contaminação da doença já alterou nossa relação com os resíduos, a ponto de hoje repensarmos, por exemplo, toda a legislação relacionada ao lixo hospitalar, que indicava que o resíduo de "hotelaria" do hospital, não necessitava igual tratamento que o resíduo contaminante - podendo seguir como lixo comum. Pergunto: SERÁ QUE ISSO PERMANECERÁ IGUAL DORAVANTE?

Com relação aos resíduos sólidos urbanos - a era dos grandes aterros fedorentos está no fim.  Os aterros já estão sofrendo algo similar aos modernos postos de gasolina - a última coisa que vendem, hoje, é o combustível.  Da mesma forma, devemos pensar esses locais como hospedeiros de várias rotas tecnológicas, visando EVITAR que  haja algum rejeito a ser disposto no fim da linha. 

No saneamento básico, a relação entre patologia e falta de saneamento já migrou do campo da incompetência administrativa para o da criminalidade. É hora de dar um basta. 

O tratamento do esgoto urbano, obrigatoriamente, deverá sofrer  disrupção tecnológica, pois, no caso brasileiro, não é mais possível se adotar o discurso da falta de verba ou de prioridade como desculpa para não universalizar o saneamento. 

Tratar a água, distribuir, coletar o esgoto e tratá-lo, destinando corretamente o resíduo proveniente do sistema, será uma obrigação econômica com profundas consequências ambientais, doravante. 

A legislação deverá se alterar para obrigar o Estado a buscar a universalização como forma de mitigação e prevenção á degradação ambiental - isso significa que ela deverá ocorrer, como atividade de engenharia, em qualquer meio. A adoção de sistemas de ecodesign mais avançados, como é o caso dos sistemas fito sanitários, integrando o ambiente natural á despoluição das águas, ou a dispersão de sistemas de tratamento e reúso da água, eem micro e macro sistemas - para atendimento a unidades, comunidades e centros urbanos policentrados. 

Na organização do trabalho e mobilidade, haverá novidades. As pessoas usarão os meios de transporte com mais racionalidade, pois o impacto da pandemia  revelou que a gestão ambiental deverá ser considerada no deslocamento da população. Assim, o escalonamento de horários, o desestímulo ao transporte individual, a melhoria das condições de higiene nos transportes de passageiros, tudo isso levará a uma racionalidade no fluxo - exigindo que  as administrações repensem seus departamentos de transporte e tráfego.

Por fim, a responsabilidade jurídica ambiental, deverá finalmente alcançar o gestor que não tratar de integrar essas medidas de prevenção e profilaxia, no rol de atividades de controle ambiental, seja no ambiente privado, seja, principalmente, no ambiente público. 

Assim, a COVID 19 tem sim  relação com a degradação do meio ambiente, e o tratamento e prevenção da doença integram o  campo da moderna gestão ambiental, severamente impactada pela pandemia. O fenômeno impõe um redesenho ecológico-econômico nas relações humanas. 

Hora de repensar os discursos nessa área ambiental, em todos os sentidos. 



Notas: 

* PEDRO, Antonio Fernando Pinheiro - "Coronavírus e a Guerra Híbrida entre China e EUA", in Blog "The Eagle View", 24Março2020, in  https://www.theeagleview.com.br/2020/03/coronavirus-e-guerra-hibrida-entre.html

**KISSINGER, Henry A. - "A Pandemia do Coronavírus Alterará Para Sempre a Ordem Mundial", in Blog "The Eagle View", 11Abril2020, in https://www.theeagleview.com.br/2020/04/a-pandemia-de-coronavirus-alterara-para.html








Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio do escritório Pinheiro Pedro Advogados.  Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB, Membro do Conselho Diretor e Consultor Jurídico da ABREN - Associação Brasileira de Recuperação Energética de Resíduos  e Vice-Presidente da Associação Paulista de Imprensa - API.  É Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal e responsável pelo blog The Eagle View". Foi integrante da equipe que elaborou o plano de transição da gestão ambiental para o governo Bolsonaro.
















2 comentários:

  1. Os eventos relacionados à pandemia do novo corona virus são recentes e abrem um campo novo para pesquisas. No que se refere ao meio ambiente é oportuno verificar se o virus esta circulando da cidade para os recursos hidricos.

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