Páginas

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

MEDALHAS... MEDALHAS... E MÉRITO

Um lance de memória dos tempos de militância no Direito Penal Militar


entregando o "PMzito" ao Of PM Azevedo  Lopes -  meu primo de coração e irmão de alma,
cuja história de vida daria um filme premiado de cinema...



Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro

A foto acima  é dos anos 80. Eu estava condecorando por bravura policiais do 11o. Batalhão de Polícia Militar Metropolitano - o famoso 11BPM-M. 

Fui defensor credenciado pela Caixa Beneficente da Polícia Militar do Estado de São Paulo entre 1985 e 1995.  Eramos, então, meia dúzia de advogados para atender todo o estado. Atuei, no período, em aproximadamente 500 processos na Justiça Militar, envolvendo a defesa de milhares de policiais. - pois na esmagadora maioria das vezes, a guarnição (quando não várias) eram implicadas nos processos e investigações policiais militares. Outras centenas de processos contaram com meu patrocínio na defesa de policiais, na justiça comum - por delitos de abuso de autoridade e júris (casos de homicídio não abrangidos pela hipótese da lei penal militar.  

O foco da atuação  na CBPM era defender os policiais quando indiciados ou denunciados pelo cometimento de crime contra a pessoa no exercício da função.

O período era complexo. A "nova república" estava sendo implantada no Brasil sobre a farda dos policiais militares , sistematicamente confundidos com o "entulho autoritário", perseguidos pela militância dita dos "direitos humanos", deixados à míngua por governos ideologicamente acovardados e submetidos à sanha acusatória de um Ministério Público que literalmente havia "invadido" e "ocupado" a Justiça Militar Estadual , sem qualquer autorização expressa ou definição legal - logo após a aposentadoria do último promotor de justiça militar estadual (que era oriundo de carreira própria).

As indefinições advindas dos governos "Montoro-Quercia-Fleury" quanto à segurança pública, obrigou o estamento policial militar a agir como verdadeira ferramenta de controle social - empenhada em conter (e de fato, no período conteve com sucesso) a escalada da criminalidade.

Nesses dez anos de atividade intensa, entre as décadas de 80 e 90,  a média de mortes de civis ocorrida em confrontos com a polícia militar paulista era superior a mil por ano.  A retaliação ideológica do Ministério Público também era  complexa. Nesse período, a Justiça Militar chegou a enfrentar uma avalanche de 11.000 (onze mil) processos, por conta de uma atitude explicitamente beligerante de vários promotores de justiça - que pareciam seguir uma orientação política da PGJ. O fato é que  denunciavam até sumiço de latinha de graxa para sapatos em vestiário de quartel...

Por óbvio que a sucessão de promotores mais adaptados ao novo regime constitucional  atenuou o embate, e o clima de empatia e cordialidade, quando não de amizade entre os poucos advogados que então ali militavam, os promotores e magistrados, permitia uma melhor resolução e aplicação de política criminal que muito reduziram o problema. 

A  Polícia Militar, e esse fato é patente, acumulava sua atividade de policiamento administrativo, ostensivo e repressivo, com o atendimento à uma demanda advinda do clima político-econômico que então ocorria: a de segurar, a qualquer custo, os efeitos nocivos de um descontrole social e territorial crescente, que se abatia especialmente nos meios urbanos do Estado.

Greves sindicais, movimentos de canavieiros, grandes rebeliões no sistema prisional, o advento em grande profusão dos chamados loteamentos e ocupações clandestinas nas áreas de mananciais e periferias das cidades paulistas demandavam atividade contínua da força policial, gerando atritos e expondo a corporação a uma mídia sedenta por uma agenda negativa. 

O fato é que, em verdade, a PM agiu com extrema eficiência (e o termo aqui não contém qualquer conteúdo crítico moral) na contenção social - isso  em uma época marcada pela recessão econômica, desemprego, profunda crise moral na política, desmandos e - o mais triste e ainda não resolvido, momentos de explícita covardia demonstrados por dirigentes e líderes políticos pusilânimes, que não conseguiam conciliar o discurso proselitista que faziam com algum laivo de competência, capacidade de gestão ou identidade para com as funções exercidas. 

O processo de implementação do regime democrático no Brasil envolveu conflitos de ordem ideológica, que sistematicamente punham em xeque a figura da instituição judiciária militar.

Por ser o direito penal militar muito pouco conhecido, exercido por um segmento bastante restrito e estigmatizado por sua aplicação excepcional a civis durante a vigência da Lei de Segurança Nacional, o judiciário militar era vítima frequente de questionamentos midiáticos de radicais, autoridades em busca de algum refletor da mídia, gente que não tinha o que fazer, vítimas legítimas (e outras não tanto), de algum abuso ou violência policial. Enfim, um caldo de cultura propício para desorientar convicções e julgamentos.

Nesse sentido, várias foram as defesas que me incumbi de exercer, as quais diziam respeito muito mais à defesa institucional da Polícia Militar e da própria lisura da Justiça Militar que, propriamente, dos acusados em causa.

O  processo penal-militar assim o permitia,  e a postura política era essencial, pois na Justiça Militar prevalece a oralidade e a qualidade da defesa se vincula à imagem, postura e oratória do defensor (aliás, nos moldes da melhor tradição dos tribunos romanos).  

Assim, a tribuna do advogado era o cenário ideal para contextualizações político-sociais. Essa característica democrática e transparente permitia também o desenvolvimento, com muita liberalidade, de teses técnicas, questionamentos no campo da perícia, da balística, da disciplina militar e de procedimentos operacionais.

Esse período proporcionou debates memoráveis com promotores de justiça - vários deles brilhantes e muito experientes. Também propiciou momentos de orgulho por vergar uma toga, uma beca, um uniforme medalhado ou ternos elegantes (pois a justiça militar estadual nunca exigiu na primeira instância que defensores e promotores vergassem o traje talar). Os julgamentos públicos, conduzidos por um conselho de justiça formado por quatro oficiais e um magistrado togado (à época chamado Auditor), não raro se estendiam em considerações densas a respeito dos fatos da causa e suas circunstâncias sociais, políticas e jurídicas. Essas considerações eram muitas vezes também reproduzidas pelos julgadores, antes de proferir o seu voto.  Essa mecânica gerava uma aula a cada julgamento.

Fiz centenas e centenas de defesas e sustentações orais na Justiça Militar do Estado e no tribunal do Júri. Atuei em quase mil procedimentos disciplinares militares - averiguações sumárias, conselhos de disciplina e de justificação.

Éramos naquela época poucos profissionais especializados na disciplina. Todos, no entanto, respeitadíssimos por praças, oficiais, magistrados e promotores.

Éramos bem recebidos nos quartéis e na Academia de Polícia Militar. Tínhamos amplo e irrestrito acesso aos oficiais de cartório, magistrados e promotores. Não havia arrogância, controles, burocracia imbecil e idiossincrasias idiotas. O próprio meio se encarregava de corrigir excessos e praticamente isolar os destoantes. 

Casos históricos passaram por minhas mãos, como o complexo caso envolvendo as guarnições da ROTA, assaltantes e reféns na Praça Panamericana, o caso emblemático do tiroteio entre a guarnição da PM e um investigador aposentado (pai de magistrado) cuja altercação com a mulher, no seu apartamento, fora comunicada à PM (por vizinhos) como "roubo a residência"; que rendeu muita mídia nos anos 80. Os primeiros casos "escandalosos" envolvendo guarnições inteiras e comandos de batalhões - oriundos da progressiva atividade do SR3-BPGE-Corregedoria PM, nomes sucessivos para a unidade comandada pelo histórico Major e posteriormente Coronel Perini (que também foi meu cliente).

Marcou o caso da rebelião na Casa de Detenção - o caso Carandiru, que acompanhei na fase de investigação (quando livrei seis dos 26 PMs que me foram encaminhados, dos 120 implicados no conflito). Posteriormente, quando do acompanhamento do processo na Justiça Militar, fui encarregado da defesa de 23 PMs, resultando em um julgamento memorável, com sustentação oral decisiva, encaminhando o processo para a justiça comum ANTES  do advento da chamada Lei Bicudo, por ter o Conselho entendido haver necessidade de analisar a participação das autoridades civis  na definição das ações em campo (fato omitido da história dos fatos da causa até hoje, porém - incluso minha defesa da tese, que levaria ao reconhecimento da excludente de ilicitude - registrado nos autos do processo). 

Os momentos de coragem e enfrentamento nessas crises me fizeram crescer e amadurecer, como homem e profissional, para muito além do que poderia ter imaginado ao sair da faculdade.

Aprendi na prática, o que a doutrina ainda pouco  explora. O Policial Militar não é um profissional comum. É um cidadão dotado de características especiais.

Em qualquer parte do mundo, o militar é submetido a um regime especial de tutela, quando no exercício de sua atividade precípua. Essa atividade, parafraseando Max Weber, consiste em exercer a violência dentro de limites previamente definidos - violência cujo monopólio compete ao Estado.

"Todo Estado se fundamenta na força", disse Trotski em Brest-Litovsk, ao firmar o tratado de paz com a Alemanha na primeira guerra.  De fato, partindo dessa afirmação Weber ponderou que se não existissem instituições sociais que conhecessem o uso da violência, o conceito de Estado seria eliminado e surgiria uma situação que poderíamos designar como 'anarquia', no sentido específico da palavra.

Assim, se o estado detém o monopólio da violência, é o militar o profissional encarregado de exercê-la.  E isso pude apreender lendo o Morris Janowitz,  para quem o militar "é o profissional da violência de Estado".

Ora, lidar profissionalmente com a violência requer qualidades excepcionais, profundo senso de dever, valores fortes e inquebrantáveis, excepcional e firme disciplina, senso de obediência e comando, subordinação a rígido controle hierárquico (em especial o vertical), e estilo de vida muito próprio. A  firme, controlada e apertada regulamentação da vida militar, coloca em relevo a coesão grupal, a lealdade e o espírito de corpo marcial. No mesmo sentido, a doutrina e os protocolos de ação só se tornam  eficientes por conta da forma como os militares se fecham em sua vivência social nos circulos de convivência militar - os quais reforçam as características e valores próprios da profissão,  "filtrando" mudanças tecnológicas e políticas ocorrentes no entorno.

É dessa característica que aprendi o porquê da longevidade da instituição militar e a capacidade do setor produzir poderes "auto-normativos" sobre os seus membros, De fato, apreender essa sutileza me fez pensar a instituição e seus homens e mulheres, para muito além do que muitos deles até mesmo pensavam. Enfim...

Após me desligar voluntariamente da CBPM, continuei atuando como advogado na defesa de PMs, escolhendo porém  a dedo as causas, até que minhas atividades na consultoria ambiental e cível reduziram quase que por completo minha disponibilidade de tempo - isto porque a defesa de acusados na justiça militar e, principalmente, nos extensos processos administrativos disciplinares - em especial os conselhos de disciplina e de justificação, demandavam tempo e exigiam comparecimento pessoal do defensor em sessões que chegavam a durar o dia inteiro, por dias seguidos. 

Não por outro motivo, sempre me fiz acompanhar por colegas que me auxiliavam.  advogados e estagiários, submetidos a intenso treinamento no escritório e nas causas. Vários deles seguiram na carreira da advocacia criminal e nela despontam hoje com muito sucesso, seguindo "nossa escola"...

O fato é que sempre busquei agir em defesa dos PMs na perspectiva de defendê-los e, também, a instituição. De proteger a função que eles exerciam -  de garantir e zelar pela ordem pública e integridade dos cidadãos de bem. Advocacia criminal digna e pobre,  pois exercida para quem a princípio defende a lei e a ordem, não se dedicou a transgredi-la ou enriquecer desviando-se dela. Isso é algo que carrego na alma com muito orgulho. 

Foi um período de boas lembranças, excelentes amizades, muito aprendizado e profundo conhecimento da estrutura de segurança pública brasileira.

Hoje ainda tenho minhas causas criminais, alguns processos administrativos e, inclusive, júris (afinal, não deixei a profissão...rs). O volume, no entanto, é significativamente menor - o que me permite transitar nas demais áreas do direito sem "inundar" o escritório com gente fardada (com o ofício da CBPM em mãos) ou ter sempre uma viatura na porta, como ocorria nos anos 80 e 90.

Confesso, porém, que aquela agitação toda me motivava... e dela guardo boas memórias e muita saudade. 





Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio diretor do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Integrante do Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional, membro da Comissão de Direito Ambiental do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB e da Comissão Nacional de Direito Ambiental do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB.  É  Editor- Chefe do Portal Ambiente Legal e responsável pelo blog The Eagle View.





.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Seja membro do Blog!. Seus comentários e críticas são importantes. Diga quem é você e, se puder, registre seu e-mail. Termos ofensivos e agressões não serão admitidos. Obrigado.