O mercado do Tesouro dos EUA, essencial para o funcionamento do sistema financeiro global, não parece estar funcionando
![]() |
Imagem - RT |
*Por Henry Johnston
Existe um mantra que se tornou essencialmente axiomático: o mercado do Tesouro dos EUA é o mais profundo e mais líquido do mundo. E um corolário disto é: as obrigações do Tesouro dos EUA são “isentas de risco”.
Estes pilares da verdade eterna, antes garantidos, parecem instáveis. As placas tectonicas do sistema financeiro global, liderado pelos EUA, têm se movido nos últimos anos. Mas os tremores, agora, ocorrem com mais frequência. No centro deste sistema cada vez mais frágil e disfuncional está o mercado do Tesouro dos EUA.
Todos notaram o forte aumento dos rendimentos nos últimos meses.
No início de outubro, o US 10y atingiu um rendimento de quase 5%, o nível mais elevado em 16 anos. Isto porque os aumentos das taxas da Reserva Federal aumentaram os rendimentos das obrigações. Mas o que temos visto é mais que uma característica dos mercados exigentes.
À medida que os compradores estrangeiros de títulos do Tesouro dos EUA secam - e o governo dos EUA continua a incorrer em déficits astronômicos, com taxas de juro elevadas, o mercado do Tesouro mostra cada vez mais sinais de disfunção.
As implicações disso são preocupantes.
Para onde foram todos os estrangeiros?
Houve uma época em que os títulos do Tesouro eram essencialmente o maior produto de exportação dos EUA. Eles serviam como mecanismo para financiamento de fornecedores a nível macro, ao abrigo do qual os EUA importavam bens e energia do resto do mundo em troca de dólares – e esses dólares foram devidamente reciclados de volta em títulos do Tesouro para financiar o déficit dos EUA.
Quando os déficits começaram a aumentar na década de 1980, sob o presidente Ronald Reagan, muitos se perguntaram como seriam financiados. Mas a partir de meados dessa década, os bancos centrais estrangeiros – principalmente os japoneses – precipitaram-se e começaram a angariar maiores quantidades de títulos do Tesouro dos EUA.
Entre 1986 e 2002, os bancos centrais estrangeiros compraram 28-30% de todos os títulos do Tesouro dos EUA emitidos; entre 2002 e 2014, o Banco Popular da China (PBOC) tornou-se o principal comprador e o número de compras externas atingiu impressionantes 53%.
Desde 2014, esse número tem sido negativo em 4%, o que significa que os bancos centrais estrangeiros pararam de comprar numa base líquida, ao mesmo tempo que os défices dos EUA continuaram a crescer.
Existem muitas razões para essa mudança. Muita atenção foi dada ao primeiro lote de sanções à Rússia em 2014, por conta do conflito territorial com a Ucrânia - e ao subsequente embarque de Moscou no caminho do desinvestimento do dólar – um processo que Pequim observou de perto. Mas houve também uma compreensão mais profunda que os EUA não iriam nem poderiam mais gerir sua moeda no melhor interesse do mundo.
Quando o Fed lançou programa de flexibilização quantitativa sem precedentes, em Março de 2009, o Presidente Ben Bernanke admitiu que tinha “atravessado o Rubicão”. Cinco dias depois do anúncio do programa, Zhou Xiao Chuan, o governador do PBoC, publicou um livro branco com o título não muito sutil de “Reforma do Sistema Monetário Internacional”, apelando para a reformulação do quadro pós-Segunda Guerra Mundial.
Em 2014, depois de ter visto o Fed quadruplicar seu balanço para cerca de 4,5 bilhões de dólares, a China tomou a decisão estratégica de parar de aumentar sua carteira de títulos do Tesouro dos EUA. A forma com que os Americanos imprimiram dinheiro por razões puramente internas – desvalorizando implicitamente a dívida que a China detinha em grande parte – certamente não agradou a Pequim.
![]() |
As compras chinesas de títulos do Tesouro dos EUA atingiram o pico em 2014 e têm diminuído desde então © Fonte: Ycharts.com |
Se 2014 marcou uma espécie de encruzilhada para a procura externa de títulos do Tesouro, não foi coincidência que os EUA adotaram regra obrigando grandes bancos a deter ativos líquidos de alta qualidade - grande parte, obviamente, títulos do Tesouro. Aparentemente, isto foi feito para garantir que os bancos tivessem liquidez suficiente num cenário de tensão de curto prazo. Mas a regra teve o efeito de forçar os bancos a comprar mais títulos do Tesouro – no momento em que os principais bancos centrais estrangeiros recuavam.
O primeiro indício de um problema de liquidez
Foi também em 2014 que os problemas com a liquidez do mercado do Tesouro começaram a ser examinados pela primeira vez. Em Outubro desse ano, o mercado convulsionou sem qualquer gatilho aparente, fato que acabou por ser considerado apenas uma “recuperação relâmpago”.
Houve várias outras convulsões significativas ao longo do caminho: a súbita crise das recompras em setembro de 2019, a paralisação do mercado do Tesouro em março de 2022 e a quebra do mercado Gilt do Reino Unido, no outono de 2022.
Em 2022, o pior surto de inflação em quatro décadas forçou o Fed a aumentar drasticamente as taxas. As taxas de juro mais elevadas fizeram subir os rendimentos das obrigações e, como os preços das obrigações se movem inversamente aos rendimentos, os títulos do Tesouro dos EUA sofreram perdas.
Muitos bancos dos EUA ficaram profundamente submersos nas suas posições no Tesouro, um fato que desempenhou papel importante no colapso do Silicon Valley Bank - no início deste ano.
Houve muitas razões específicas para o colapso desse banco. A gestão de risco praticamente inexistente foi uma delas – mas o que o episódio revelou é que muitos bancos estavam sentados em grandes perdas não realizadas nas suas posições do Tesouro.
À medida que os depositantes exigiam seu dinheiro de volta – tanto por medo de falência bancária como para colocar seu dinheiro em fundos do mercado monetário de maior rendimento – os bancos teriam de vender os seus títulos do Tesouro, submersos num mercado em rápida deterioração, com poucas propostas.
No entanto, sentindo a fragilidade do sistema e não querendo um colapso total sob sua supervisão, o presidente do Fed, Jerome Powell e seus colegas decidiram agir – e agiram de forma decisiva.
Lançando outra sigla
Mas o que exatamente eles fizeram?
Powell e seus colegas instituíram outro daqueles programas de resgate, denominado Programa de Financiamento a Prazo Bancário (BTFP).
No momento em que o Fed tentava apertar as condições financeiras para combater a inflação, a manobra teve o efeito de adicionar liquidez ao mercado, provando assim (como se houvesse alguma dúvida) que a retórica do Fed sobre o combate à inflação se estende apenas ao ponto onde começa a disfunção do mercado.
O BTFP permitiu que os bancos tivessem acesso a empréstimos de um ano do Fed através da colocação de títulos, algo bastante comum. Mas é o preço que levanta as sobrancelhas. Em vez de seguir a prática e forçar a marcação - ou seja, utilizar o valor de mercado em vez do valor nominal – a garantia pode ser prestada ao par, independentemente de onde seja negociada. Assim, um título que tem um valor nominal de US$ 100, mas está sendo negociado a US$ 70, pode ser entregue ao Fed em troca de um empréstimo de US$ 100.
Mas a história é mais interessante que isso. Como salientou o analista Luke Gromen, quando olhamos abaixo da superfície das instalações do BTFP, percebemos que é basicamente um controle suave da curva de rendimentos para os bancos – pelo menos para aqueles com sucursais nos EUA. Em outros termos, a operação foi um resgate do mercado do Tesouro tanto quanto um resgate dos bancos.
Foi certamente um resgate para os bancos, enganados por um golpe duplo de movimentos de mercado contra eles e saídas de depósitos. Afinal, eles precisavam cobrir as suas perdas no papel. Mas a implicação mais profunda foi que isto serviu como uma espécie de prenúncio do controle da curva de rendimentos – uma ferramenta política pouco ortodoxa utilizada por bancos centrais para atingir um nível específico de taxa de juro nas compras.
Uma coisa é certa: o controle da curva de rendimentos é a morte dos mercados financeiros livres.
Embora o Fed não objetive uma taxa de juro específica mas sim o controle do fluxo de crédito, a ferramenta política limitou de fato os rendimentos abaixo do preço de mercado atual – e isso é um importante prenúncio do rumo que as coisas irão tomar.
O colapso do Silicon Valley Bank já é notícia velha e os poderes constituídos deram garantias de que a crise bancária já passou há muito tempo. Porém, os números do BTFP parecem dizer o contrário.
Em 28 de junho, a aceitação do programa pelos bancos tinha atingido mais de 100 bilhões de dólares. Isso significa que os resgates ainda ocorrem passados vários meses.
O BTFP deverá durar apenas um ano, mas já falam que se tornará parte permanente do cenário financeiro. Como diz o velho ditado, não há nada mais permanente que um programa de governo temporário...
![]() |
© Fonte: Ycharts.com |
O Tesouro anuncia recompras…. esperar recompras?
Mais recentemente, foi dado outro passo firme na direção do controle da curva de rendimentos. O Tesouro dos EUA anunciou que iria lançar um programa de recompra no próximo ano.
Na lenta descida do mercado do Tesouro dos EUA para a iliquidez e a disfunção, já fomos obrigados a assistir a compras diretas de dívida pelo Tesouro que ninguém no mercado quer comprar. Agora... temos isso.
No ano 2000, quando a ferramenta foi utilizada em circunstâncias muito diferentes - o governo tinha um excedente e emitia títulos do Tesouro para manter o acesso ao mercado, com os rendimentos dos novos títulos usados para recomprar os antigos.
Agora, porém, a ferramenta reaparece utilizada, de acordo com comentários de um funcionário do Departamento do Tesouro num fórum em Nova Yorque, em Setembro último, para “[ajudar] a tornar o mercado do Tesouro mais líquido e resiliente” - isso num discurso alegre e partidário - “para garantir que o mercado do Tesouro continue a ser o mercado mais profundo e líquido do mundo”. Declarações como estas, feitas de forma casual e apresentadas como um pequeno programa de manutenção que não será usado para combater uma potencial crise, desmentem outra “travessia do Rubicão”.
Se analisarmos, isto significa que o Tesouro está se preparando para a possibilidade de não haver compradores suficientes para a avalanche de emissões que atingirá o mercado nos próximos trimestres.
Ao anunciar um programa de recompra, o Tesouro está essencialmente construindo as bases para ser o “comprador de último recurso” - sem declarar isto explicitamente para não assustar os mercados. Aliás, é o que o Japão fez na última década: essencialmente nacionalizar a dívida que ninguém quer.
O conhecido analista Zoltan Pozsar comparou esses fatos como se o Fed e o Tesouro estivessem “construindo andaimes em torno do mercado do Tesouro”, para lidar com a falta de liquidez e compradores marginais.
A pergunta que não quer calar é: por que isso é necessário no mercado mais profundo, mais seguro e mais líquido do mundo?
O governo está gastando como se não houvesse amanhã
Neste ano, o déficit dos EUA deverá atingir 2 bilhões de dólares - espantosos 8,5% do PIB, e não há sinais de que irá parar. Este é um número praticamente inédito num período de crescimento econômico.
Não é novidade que a emissão do Tesouro está programada para disparar nos próximos trimestres. Além da questão de como os EUA podem suportar pagamentos de juros massivamente mais elevados sobre a dívida – estimados em 1 bilhão de dólares na base anualizada este ano – há a questão da falta aguda de compradores marginais da dívida.
![]() |
Os défices de 2020 e 2021 foram anormalmente elevados devido aos estímulos relacionados com a pandemia. © Fonte: Ycharts.com |
O Fed está empenhado num aperto quantitativo. Isso significa que irá permitir que as obrigações vençam e saiam do balanço, em vez de renovarem.
Os bancos comerciais dos EUA têm pouca capacidade ou apetite para mais compras de títulos do Tesouro. Na verdade, tentam retirar a duração dos seus balanços e procuram reduzir as participações no Tesouro. O CEO do JPMorgan, Jamie Dimon, alertou recentemente que as taxas poderiam subir ainda mais, então ele claramente não pretende investir em títulos do Tesouro.
Durante muito tempo, os EUA recusaram-se acreditar que tinham um problema fiscal e, para ser justo, na era das taxas de juro baixas e com a procura externa pela dívida dos EUA sempre presente, talvez isso não acontecesse.
Os EUA talvez sejam viciados em dívidas, mas dívidas funcionais.
No entanto, manter enormes déficits num período de alta das taxas de juros,,, puro combustível. De certa forma, remonta à década de 1940, também um período de déficits elevados e taxas crescentes devido à guerra – e também, quando o controle da curva de rendimentos foi introduzido. Mas, na verdade, os dois casos acima remontam a outro contexto. A economia dos EUA era fundamentalmente saudável e produtiva no período pós-guerra. Recuperou-se rapidamente e as políticas pouco ortodoxas foram abandonadas.
A atual economia dos EUA, altamente financiada e profundamente endividada, é uma sombra do que era, mas os decisores políticos dos EUA não parecem ter-se ajustado.
Alguma forma de controle total da curva de rendimentos virá, cedo ou tarde. Já está se infiltrando no reino da especulação dominante. Mas, desta vez, dificilmente será como uma política temporária de guerra; pelo contrário, será um movimento desesperado rumo à disfunção de mercado, no cerne do sistema financeiro global.
Isso irá gerar um banquete de consequências.
Um colapso no funcionamento do mercado do Tesouro poderá desencadear uma epifania - como se os EUA fossem um automóvel armado por terroristas, que explodirá se o motorista reduzir a velocidade para menos de 80 km/h - tal qual no filme de Keanu Reeves de 1994, “Speed”.
Politicamente incapaz de voltar atrás nos seus direitos e compromissos militares, porém incapaz de pagá-los, irá deparar-se com a parede fiscal de despesas excessivas, armada com juros e procura insuficiente para seus títulos de dívida.
O Fed tornou-se estranhamente hábil em remendar os mercados e, para citar Luke Gromen, em empregar a sua técnica padrão de “estender e fingir… depois inflar”. Poderá continuar a encontrar formas cada vez mais engenhosas de manter o edifício cambaleante em pé por algum tempo. Mas a podridão que grassa no próprio coração do sistema financeiro global torna-se cada vez mais evidente para aqueles que têm olhos para a ver...
Henry Johnston é editor da RT - Russia Today. Trabalhou por mais de uma década em finanças e é titular de licença FINRA - Financial Industry Regulatory Authority (Autoridade Regulatória da Indústria Financeira nos Estados Unidos), Série 7 e Série 24.
Obs: tradução AFPP (Blog The Eagle View)
*Artigo originalmente publicado na RT - in https://www.rt.com/business/586946-us-treasury-market-problem/
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Seja membro do Blog!. Seus comentários e críticas são importantes. Diga quem é você e, se puder, registre seu e-mail. Termos ofensivos e agressões não serão admitidos. Obrigado.