O Pacto Pela Governabilidade pode nos livrar da jurisprudência do medo que nos desestabiliza a cada dia
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Hércules mata a Hidra de Lerna... |
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro
"Sempre achei que um dos mais graves problemas dos subdesenvolvidos é a sua incompetência na descoberta dos verdadeiros inimigos."
Roberto Campos
Neste artigo procuro, a partir de uma crise, dentre as várias ocorridas entre instituições e quadros da república, apontar os arquétipos mitológicos que envolvem a atual crise política brasileira, informar a razão porque entendo constituir o populismo (incluso o bolsonarismo), um perigo para a República, ressaltar as disfunções que acometem o STF e o Congresso e concitar todos à tarefa hercúlea de articular um pacto pela governabilidade do Brasil.
O que já está ruim, piora
Como diz o dito popular, nada é tão ruim que não possa piorar. Mas, no caso brasileiro, a crise institucional ganhou aspecto mitológico, inversamente proporcional à envergadura dos personagens greco-romanos que compõem a mitologia.
O caso paradigmático é a crise institucional entre o Supremo Tribunal e a chefia do Executivo Federal, em torno de uma estapafúrdia consulta formulada pelo PDT - Partido Democrático Trabalhista ao STF, sobre o "alcance do art. 142 da Constituição Federal e o papel das forças armadas".
A consulta do partido, que compõe a ala esquerda do parlamento nacional, notoriamente insubsistente, gerou uma decisão absurda do supremo sodalício e produziu uma reação ainda mais despropositada do executivo.
Senão vejamos:
O PDT, partido que faz linha auxiliar do lulopetismo, numa provocação explícita ao Presidente da República e às instituições militares, "consultou" a cúpula do Poder Judiciário sobre o alcance do art. 142 da Constituição Federal na definição do papel das Forças Armadas.
Não trouxe o PDT, à corte, qualquer questão ou conflito concreto relativo à aplicação da norma constitucional. Fez uma consulta "em tese", com base no "ouvir dizer", como se a suprema corte do país emitisse pareceres administrativos hipotéticos - como a Advocacia Geral da União ou a Procuradoria Geral da República, em casos afetos a cada um desses órgãos.
Distribuída a peça no STF ao Ministro Fux, o magistrado, inacreditavelmente, ao invés de repelir a peça por inconsistência ou remetê-la ao plenário para analisar sua admissibilidade, proferiu "decisão liminar" e monocrática - como se "consulta" demandasse "juízo de tutela".
A "decisão" disse o óbvio: que Forças Armadas não são um poder constituído - portanto não constituem "poder moderador", e tal atributo não se encontra previsto constitucionalmente desde a Constituição do Império.
A "decisão" disse o óbvio: que Forças Armadas não são um poder constituído - portanto não constituem "poder moderador", e tal atributo não se encontra previsto constitucionalmente desde a Constituição do Império.
Fux, porém, de forma isolada, decidiu ir além e "esclarecer" o alcance da Constituição. Passou a emitir conceitos políticos sobre o funcionamento das instituições de maneira geral, em especial das Forças Armadas, ditando regras de forma professoral. Uma verdadeira miniatura de Licurgo - o legislador espartano da antiga Grécia.
A Jurisprudência do Medo
Assim agiu o supremo ministro, para "prevenir"... "em tese", uma "ação moderadora" das Forças Armadas. Obstruiu, com isso, de forma oblíqua, o exercício efetivo do dever de intervenção para manutenção da ordem - que as Forças Armadas de fato e direito devem fazê-lo sob a chefia do Presidente da República.
Fux ousou ignorar a história, os ditames da Teoria de Estado, a funcionalidade das instituições de defesa nacional, os elementos de soberania... tudo para suprimir algo que de fato as FFAA possuem e já exerceram no passado, na República, várias vezes! E não o fizeram de forma escoteira - pois o Estado Moderno encontra-se lotado de exemplos na história comparada mundo afora.
Como se já não houvesse uma crise de governabilidade, com choque constante entre o Poder Judiciário e Poder Executivo, o Supremo Ministro reiterou a efetividade da tutela judicial sobre a governança do país, rotulando qualquer ação divergente como "golpe". Algo que Freud denominaria "sintomático".
Fux firmou uma jurisprudência do medo. Mais uma dentre outras temerosas e temerárias excretadas pela pior judicatura da história, hoje aboletada no Supremo Tribunal, para desalento dos que se esforçam por viver em um Estado Democrático de Direito no Brasil.
Mas, como dito, o ruim ainda pode ficar pior
Diante da decisão do "Licurgo de Brasília", resolveram o Presidente Bolsonaro, o Vice Mourão e o Ministro da Defesa Fernando Azevedo, fazer as vezes de um neo-triunvirato romano. Assinaram Nota Conjunta para informar que "decisões judiciais absurdas não se cumprem" e que "Forças Armadas não fazem intervenção para tomada do poder".
Como não poderia deixar de ser, a Nota Conjunta emitiu sinais trocados junto à opinião pública e elevou a temperatura - já bastante elevada, das tensões interinstitucionais na República.
A jurisprudência do medo consolida uma espiral de desinteligências interinstitucionais que, uma hora ou outra, poderá interromper o processo de maturidade do regime democrático.
A base mitológica na psicologia da crise
Arquétipos constituem um eixo comportamental instalado profundamente no inconsciente coletivo das civilizações. Determinam valores ancestrais, comportamentos, modelos e protótipos, expressos na filosofia, na psicologia e nas narrativas que marcam as impressões de nossa história.
Assim, importa, e muito, identificar os arquétipos que imprimem o rumo da crise que ora analisamos.
Fato: Fux não é Licurgo e o trio do Planalto não se equipara, nem de longe, a Pompeu, César e Crasso. Não protagonizam qualquer feito histórico e, sim, um embate de egos desprovidos dos mais comezinhos princípios de Teoria do Estado.
Saindo da história medíocre para a mitologia greco-romana, vislumbramos um embate teratológico entre dois fenômenos institucionais:
A - Um Supremo Tribunal Federal que não decide de forma colegiada e, quando busca a "colegialidade", gera crises, recalques e tergiversações. Não raro se presta a "revisar" decisões pacificadas - quando envolvem próceres da república (para o bem e para o mal); isso quando não se presta a servir de via transversa para partidos minoritários realizarem o que não obtém regularmente no parlamento. Dessa forma, substitui a função de resolver conflitos... para gerá-los. Destrói a governabilidade por meio de decisões reativas, desprovidas de boa técnica ou comezinha juridicidade, monocráticas ou extraídas de suas onze cabeças, tal qual a Hidra de Lerna; e
B - Um Presidente da República que se perde no próprio proselitismo. Trata de exercer a governabilidade delegando-a, de fato, a um gabinete moderador formado pelos seus ministros militares palacianos - mas não raro boicota a ação moderadora delegada, emitindo sinais trocados, gerando com isso picos de instabilidade por meio de pronunciamentos e gestos replicados por seus filhos, seguidores acríticos e demais apaniguados ideológicos - tal qual Janus, o Deus Romano dos caminhos, cujo crânio possui duas caras.
Como dito, a psicologia explica essa relação comportamental com a mitologia. Ela é fruto da sabedoria humana em relacionar os mitos com os estágios mais profundos de nossa mente, que ainda ditam nossas reações apesar do tempo.
Um país no divã
Arquétipos mitológicos são conteúdos mentais do inconsciente coletivo, que agem como instintos psicológicos de um povo, segundo Carl Jung.
Essa distorção mitológica serve de referência para a tragédia brasileira, cujo roteiro foi traçado na derrocada final do lulopetismo e no processo de crise institucional que redundou no impeachment de Dilma Rousseff.
Dilma soçobrou sob o peso do maior quadro de corrupção sistêmica jamais visto antes na história mundial.
O resultado trágico foi fruto das escolhas do populismo encabeçado por Lula - um visceral demiurgo - caracterizado por Platão como um artesão divino, um princípio organizador do universo que, sem criar de fato a realidade, modela e organiza a matéria caótica preexistente através da imitação de modelos eternos e perfeitos.
Essa forma geradora de ilusões, quem diria, encarnou em Lula, personificado pela etimologia do termo - demios - significando "do povo" e ourgos, significando "trabalhador. Pobre mitologia...
O arquétipo populista, sempre sob o pretexto da "restauração"... nos cobra o alto preço da perda da liberdade, da cultura, da educação e do meio ambiente. Restaura a mediocridade e a corrupção.
Bolsonaro, o demiurgo de plantão encarnado no "Janus" do Planalto - reafirma o vaticínio marxista de que a história se repete em forma de tragédia, na primeira vez e, na segunda, como farsa.
Por óbvio a transição de demiurgos não ocorre de forma isolada. Os monstros mitológicos se unem às ménades bacantes, numa orgia decadente que destrói os demais poderes da República.
O país está, de fato, no divã. E parece não se tratar mais de uma questão psicológica e, sim, psiquiátrica. Necessita firme intervenção e remédios tarja preta.
A tarefa demanda liderança capaz
Parece que não saímos do epílogo do impeachment de 2016.
Naquela época, escrevi o seguinte texto que reproduzo em parte por retratar a presente crise:
"Sob os escombros do lulopetismo, afogados no mar de lama e destruídos pela judicialização absoluta da política nacional, jazem os corpos da Nova República de 1985 e da Constituição de 1988.
O Lulopetismo foi apeado do Poder, porém não saiu de cena. Permanece moribundo, sustentado por militantes sem rumo, colado ao fantasma do regime iniciado em 1985 e que gerou a Constituição de 1988.
O próximo inimigo será justamente o guardião dessa zumbilândia normativa: a jusburocracia instalada no Poder Judiciário e aboletada nas carreiras jurídicas de Estado, nos demais poderes da República...
Com o fim da “Nova República”, a Constituição Federal de 1988 dá seu último suspiro. Reduzida a um "Livro de Colorir" nas mãos da pior judicatura da história do país (com as exceções de praxe), a Constituição de 1988 tem servido de "escada" para arroubos cada vez mais descontrolados de um Poder Judiciário intoxicado pelo protagonismo, pelo ativismo e, sobretudo, pelo corporativismo."
(...)
"Essa gangorra só acabará com uma ruptura institucional, e se com esta, nova constituição sobrevir. Quem viver, verá.
De fato, para que haja uma reforma de Estado efetiva, será preciso "desconstitucionalizar" privilégios, que impedem as mais banais medidas de saneamento administrativo.
Para tanto, a reengenharia de Estado - essencial para a governança no Brasil, irá enfrentar o pior inimigo: o estamento jusburocrático.
Não será uma batalha genérica. Será seletiva.
A burocracia paquidérmica que onera o povo brasileiro, sem lhe dar absolutamente nada em troca, dorme tranquila sobre o entulho normativo gerado pela moribunda Constituição de 1988. O guardião dessa zumbilândia normativa é a jusburocracia, instalada no Poder Judiciário e aboletada nas várias carreiras jurídicas de Estado dos demais poderes da República...No corpo do Estado, as carreiras jurídicas - diletas filhas da Constituição de 1988 (plena de direitos e vazia de obrigações), constituem o câncer virulento e invasivo. A tudo travam, a tudo emperram, a tudo judicializam e nada realizam.
Em contrapartida, oneram gravemente a folha de pagamento da Administração Pública concedendo a seus quadros os maiores privilégios.
Não há dúvida: a jusburocracia será o próximo inimigo. Inimigo formidável - porque constitui um problema que obrigatoriamente deve fazer parte da solução.
Na Nova República, advogados públicos, procuradores, promotores e juízes ganharam autonomia plena. Porém, ao invés de controlar a máquina no varejo, passaram a provocar a judicialização de todas as coisas, no atacado.
Paradoxalmente, sob o pretexto de aperfeiçoar o regime democrático, instituíram a ditadura da caneta.
A ditadura da caneta judicializa atos, fatos, pessoas e coisas, institui o parecerismo - vício que a tudo trava e nada realiza, incentiva o fiscalismo e gera conflitos ao invés de resolvê-los.
Anotem:
Na iminência da crise apertar para todos, as carreiras jurídicas de Estado irão travar o jogo das reformas, objetivando manter todos os seus privilégios.
Para que a falecida Nova República não remanesça vagando como um zumbi sem rumo, o regime de transição, com Temer ou pós-Temer, terá que impor absoluto controle social sobre as instituições de controle do Estado.
Dificilmente Temer terá estatura para a tarefa, mas deverá conduzir o processo de resgate das carreiras técnicas de Estado, demolindo os privilégios absurdos conferidos às carreiras jurídicas públicas.
O grande desafio será reformar o judiciário e impor hierarquia e disciplina ao organismo do Ministério Público - o radical livre que, se por um lado oxigena a Administração Pública, por outro oxida e destrói suas funcionalidades...
Vencida batalha pelo Palácio do Planalto, o próximo alvo da mobilização da sociedade brasileira não será o Congresso Nacional mas, sim, o Palácio da Justiça..." (*)
O texto fala por si, como a própria constituição também o faz, para o bem e para o mal.
Que fique claro. A resolução da crise entre poderes, o desmonte do dispositivo bolivariano que ainda age em Brasília, o combate à cultura do fracasso e ao marxismo cultural, a desregulamentação da vida privada, a sanitização da vida pública, o combate duro ao crime organizado, a intolerância em face do loteamento de cargos, à corrupção e o resgate da vontade nacional - pela reforma das instituições - continuam prioridades de Estado.
Porém, no meu entender, essas tarefas não serão cumpridas sob a fraca liderança bolsonarista. Em verdade, o bolsonarismo nada constrói, está empenhado apenas em destruir.
Mas o governo federal não se esgota na figura do presidente. Aliás, o governo federal conta ainda com meu apoio.
A Síndrome de Janus que acomete o governo me permite também separar o rosto dos ministros que constroem do rosto do líder que desfaz.
Resta a Bolsonaro manter uma boa e equilibrada equipe no seu entorno, se quiser ainda resguardar a legitimidade que lhe resta. O barco irá afundar se o que aí está tentar impor sua vontade idiossincrática na base da força.
O que é preciso fazer
Que o que aí está não nos serve, já sabemos há décadas!
Que estamos no limite da ruptura, sabemos há anos!
Que chegamos próximo do insuportável, percebemos há meses!
Porém, se não devemos sacrificar nossa democracia na aposta verborrágica de Bolsonaro, não podemos permitir que a síndrome de Janus desmonte o governo e o Brasil volte para as mãos imundas dos responsáveis históricos pela tragédia.
A crise de governabilidade não é apenas brasileira. Ela se insere no conflito em curso entre valores nacionais e interesses globalistas, na perda de referências por força do populismo e a entrega do ambiente político a ideologias liberticidas e reações radicais, mundo afora.
A gangorra eleitoral pendeu em vários países na direção de governos conservadores, prometendo por fim à essa instabilidade de valores. Em outras regiões, porém, o fantasma populista invocou rancores identitários ou incendiou demandas xenófobas retomando territórios.
Os democratas que lutam pela democracia e pela soberania de seus países, que defendem o pluralismo e a livre iniciativa, jamais deverão ser confundidos com o lixo populista. Da mesma forma, a guerra contra o globalismo não se confunde com recusa à globalização e o combate ao marxismo cultural não significa defesa da ignorância.
Ante esse quadro, advirto que a jurisprudência do medo, produzida pela "Hidra de Lerna" dos 11 togados temerosos e temerários, somada à clara omissão do "decapitado" Senado Federal, nos entregue de bandeja aos jacobinos populistas (à esquerda ou à direita), ao establishment e sua estrutura jusburocrática parasita.
Se continuarmos a permitir que a Hidra de Lerna e a cabeça de Janus tracem um novo e teratológico embate mitológico sobre nossas cabeças, continuaremos regidos por uma jurisprudência do medo, que nos retirará qualquer perspectiva digna e nos relegará ao limbo da história.
A saída para esse impasse mitológico, em versão rastaquera, está na articulação. Está na busca por uma via alternativa ao populismo.
É preciso reunir urgente os verdadeiros democratas brasileiros. Mobilizar os que possuem condições de apresentar um novo plano de ação para o país.
É preciso um novo Pacto Pela Governabilidade. Uma articulação por uma saída justa para o Brasil.
É preciso reforçar o Poder Legislativo, prover o Executivo de inteligência, organizar a cultura do planejamento e REDUZIR o judiciário à sua função de tutela na aplicação da Lei - não de coerção aos demais Poderes.
Tratemos de articular um novo Pacto Pela Governabilidade.
Nota:
* PEDRO, Antonio Fernando Pinheiro - "Acabou! É o fim da 'Nova República', de 1985", in Blog The Eagle View, 11maio2016, in https://www.theeagleview.com.br/2016/05/acabou-e-o-fim-da-nova-republica-de-1985.html
** Santa Rosa, Maynard Marques de - "O Arquétipo Cincinato", in Blog The Eagle View, 3junho2020, in https://www.theeagleview.com.br/2020/06/o-arquetipo-cincinato.html
** Santa Rosa, Maynard Marques de - "O Arquétipo Cincinato", in Blog The Eagle View, 3junho2020, in https://www.theeagleview.com.br/2020/06/o-arquetipo-cincinato.html
leia também:
PEDRO, Antonio Fernando Pinheiro - "A Síndrome de Janus no Governo Bolsonaro", in Blog The Eagle View, 23abril2020, in https://www.theeagleview.com.br/2020/04/a-sindrome-de-janus-no-governo-bolsonaro.html
Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB, Membro do Conselho Diretor e Consultor Jurídico da ABREN - Associação Brasileira de Recuperação Energética de Resíduos e Vice-Presidente da Associação Paulista de Imprensa - API. É Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal e responsável pelo blog The Eagle View". Foi integrante da equipe que elaborou o plano de transição da gestão ambiental para o governo Bolsonaro.
fantástico texto!
ResponderExcluirArtigo 14. O entendimento nazista só existe na cabeça podre do Bozo e nas redes de sua manada.
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