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terça-feira, 11 de dezembro de 2018

A SANTA INQUISIÇÃO DE JOÃO DE DEUS...

  Se o  abuso for provado, que se puna. O espetáculo  midiático do opróbrio, porém, permanecerá imperdoável. 

Hieronymus Bosh captou a sordidez humana do santo ofício, ao retratar a paixão de cristo 


Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro


O médium João de Deus foi acusado de abusar de várias de suas pacientes em um programa jornalístico de uma conhecida rede de televisão.  Responsável por centenas de milhares de curas espirituais, com efeitos benéficos somatizados pelos pacientes que o procuravam, João foi reduzido à figura de um abusador, acusado por dezenas de mulheres que disseram ter sido atendidas pelo médium ao longo de dezenas de anos. 

O programa jornalístico resultou em uma ação investigativa do Ministério Público goiano, que montou uma "força-tarefa" para apurar  a denúncia. Os casos relatados chamam atenção por neles se observar um padrão peculiar: o médium  nos relatos, sempre agiria ritualisticamente, sem no entanto penetrar de fato as vítimas ou conseguir mesmo uma ereção... 

A peculiaridade não exime a tipificação criminosa, mas revela circunstâncias inusuais que demandariam investigação acurada e, até mesmo, desprendimento. Afinal... Onde termina o médium, onde começa a entidade? Onde a esfera da crença religiosa termina e a desconsideração do respeito devido ao culto se inicia, pela ação policial? 

No ambiente poluído pelo denuncismo e pela justificada revolta quanto à natureza dos abusos, há um aspecto que necessita de observação mais acurada quanto ao respeito à crença religiosa em face á constituição: o fenômeno observado a partir da crença. Ora,  se no espiritismo indivíduos submetidos a entidades incorporadas, cortam na carne de "pacientes", retiram pedaços de organismos vivos, suturam e "curam" sem que autoridades sanitárias interfiram; se na umbanda, cidadãos pacatos e abstêmios, uma vez incorporados, passam a fumar, beber, falar palavrões, solicitar sacrifícios animais e mesmo descrever intimidades praticadas pelos atônitos interlocutores que procuram pelas entidades... Se, ainda,  já ocorreu de um tribunal do júri, em Goiás, dar ouvidos ao testemunho de uma entidade incorporada em um médium... inocentando o réu em sua decisão, o que dizer do comportamento inconveniente de um médium incorporado, no ato de um processo de cura? 

Talvez o fato mereça não uma força-tarefa do MP, mas uma junta médico-psiquiátrica, que analisasse o fenômeno como um todo, determinasse onde termina o médium e começa o imputado psicopata... Talvez seja o caso de incluir, também, não apenas o comportamento do acusado, mas a coreografia midiática executada por jornalistas e autoridades... sem qualquer respeito às vítimas,  à obra espírita erigida pelo imputado e aos fiéis que acorreram ao médium, como última esperança de vida...

Esse fato revela muito mais dos que agora apontam o dedo contra João de Deus... que dele próprio ou das vítimas efetivamente envolvidas no eventual delito de molestamento. 

Não se trata aqui de defender um abusador. Mas de compreender o contexto da coisa toda, que é bem maior e complexo que o fato criminoso  juridicamente tutelável. 

O espetáculo tornou-se mais interessante ao establishment... que a justa apuração dos fatos e suas circunstâncias, do balizamento do espectro da crença e da separação do escândalo, das pessoas empenhadas na fé.  Na dúvida, pelo visto, todos sairão manchados, incluso os curados...

Essa perda de foco, no entanto, não é fenômeno novo, nem em matéria de sordidez.  

Na triste história das cruzadas pela moralidade, esse ciclo se repete.

Em 20 de setembro de 1540 teve lugar, em Portugal, o primeiro auto de fé, em Lisboa, na Praça do Rossio. 

O primeiro ato de pia devoção inquisitorial contou com a presença da Corte, dos acusados, dos inquisidores e do público, todos ávidos por ver o opróbrio alheio e presenciar o sofrimento expresso como forma de justiça moral... tudo em prol da limpeza moral e religiosa.

Os denunciantes perfaziam um show à parte. Eram públicos, ocultos (acusavam por um biombo) e premiados (acusavam e como premio ficavam com o espólio do acusado). As motivações eram as mais variadas possíveis. Porém, como o santo ofício mantinha foco na heresia - os interesses subjetivos eram desprezados.

Portugal havia começado tarde. A Espanha já havia iniciado o espetáculo seis anos antes, em Sevilha. A Espanha sempre foi mais devota do que Portugal e mais precoce no incinerar judeus, bruxas, hereges, lascivos e outros inimigos da única fé verdadeira.

Imagine-se o entusiamo piedoso de ver grelhar um herege, uma bruxa ou um judeu para glória divina!

O povo, o rei, a rainha e a mais alta nobreza  não podiam deixar sozinhos os clérigos, os inquisidores pios, neste santo ofício de estriparem vivos os hereges. O esforço de obter confissões de heresia, relações sexuais impróprias, pactos com o demônio e mais relaxações, coisas que só a fogueira poderia redimir, eram presenciados com doentia curiosidade.

 E a compreensão cristã? Estava presente? Claro que não! Às favas a culpa de cada um, como critério moral para se executar o outro... Dane-se a autocrítica prescrita por Jesus, na defesa da adúltera! Saduceus e fariseus nunca se importaram com o destino ou circunstâncias do acusados - queriam mesmo era extrair o prazer de apedrejar e ver crucificar...

De fato, pior miséria humana sempre se revelou no prazer de julgar e destruir o outro.

Quando vejo muçulmanos radicais rebolarem-se de gozo com a decapitação dos infiéis ou a lapidação de uma adúltera, com chicotadas públicas ou outras punições aprovadas pelo Profeta, não posso esquecer do entusiasmo com que no Rossio, no terreiro do Paço ou na Praça da Figueira se reunia lenha para o espetáculo pio, no qual, depois de açoitados, eram os réprobos transformados em combustível que iluminava os santos e retos caminhos da Providência ao cair da noite.

Mas, no Brasil, tirante os linchamentos, a barbárie no sistema prisional, a ação das milícias ou a justiça do PCC, a tortura e o opróbrio da inquisição ganha contornos  civilizados e oficiais.  

É o caso de João de Deus e suas faltas. 

Deus é misericordioso. Haverá de compreender a sordidez que envolve todo o espetáculo da incineração midiática de João de Deus, o médium que salvou centenas de milhares e agora é acusado de abusar - sem ereção - dezenas de senhoras que se enfileiram para sublimar traumas de toda ordem... incluso a de terem mesmo sofrido o assédio do milagreiro incorporado no médium... ou vice-versa.

No entanto, mais uma vez... isso não importa. Pouco importa o fato, a apuração material da acusação, o processo, a segregação das evidências das maledicências, o estado físico e mental do acusado e... das denunciantes. O que interessa é a exposição na mídia, a destruição de todo um ciclo econômico, o prazer da iconoclastia militante, a degradação da fé e o negativismo como forma de emulação pessoal de gente hipócrita.

Vale o vitimismo como forma de negar a virtude, a desconstrução como instrumento para angariar audiência, a moralidade travestida de correção política para desvirtuados morais cotidianos. O lixo como repasto dos maledicentes com cara de conteúdo... e a destruição da fé - seja pelo desvirtuamento provocado pela sordidez imputada ao médium, seja pela sordidez de se considerar a fé, ao fim e ao cabo, um obscuro desvirtuamento criminoso da natureza humana.

A produção midiática construída com o escândalo, de fato, nunca foi o abuso criminoso, sempre foi a desconstrução da fé. 

As vítimas? Que se danem - permanecerão burocraticamente enfileiradas, para gaudio dos inquisidores, alegria dos jornalistas e a vaidade estatística das autoridades obscuras. O acusado?  Este servirá enquanto queimar... Que sirva de combustível para manter acesa a fogueira das vaidades, das militâncias, dos ódios, do noticiário - seja ele, ao fim e ao cabo (ou até antes), culpado ou não.

Entre a velhacaria e a demência, a história repete-se, rodando as religiões na reedição da crueldade para divertimento dos fiéis.

Se a sordidez é a religião dos hipócritas, a justiça, nesse campo, torna-se mera casualidade.

Se o  abuso for provado, que se puna. O espetáculo, porém, permanecerá imperdoável. 








Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio diretor do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Integrante do Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB e Vice-Presidente da Associação Paulista de Imprensa - API. É Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal e responsável pelo blog The Eagle View.

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