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quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

O DESASTROSO COMPLIANCE DE FORMULÁRIO

De ferramenta saneadora, o compliance está se tornando um  apêndice burocrático e arbitrário






Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro


O compliance foi originalmente desenvolvido como ferramenta de governança para a prevenção de riscos legais e corrupção. No entanto, cresceu reativamente e de tal forma, que transformou-se em uma indústria de formulários.

O produto dessa atividade pode hoje se dividir em entraves burocráticos, exigências inúteis e palpites sobre a vida alheia.  Não se presta mais aos seus objetivos.


Origem e desenvolvimento


Os sistemas de compliance originaram-se nos organismos financeiros, visando proteger os bancos de clientes envolvidos em atividades ilícitas - cujas movimentações financeiras ocorriam sem origem legal definida (lavagem de dinheiro). 

O mecanismo foi exportado do sistema de controle de movimentações financeiras para o controle de governança das empresas, para prevenir danos processuais decorrentes da legislação anticorrupção - em especial após o esforço norte americano de combate à lavagem de dinheiro e à corrupção na primeira década deste século.

O Departamento de Justiça dos Estados Unidos normalizou o instrumento, tornando-o peça essencial de governança, a ser considerada na estrutura das grandes corporações.

Com o incremento dos contratos de concessão, contratos de empreitada e de operação de projetos públicos de infraestrutura - decorrentes do aquecimento da economia nos países emergentes e da entrada de novos players no sistema de contratação internacional de projetos e obras, os mecanismos de controle de governança passaram a ser mais demandados. Projetos construídos financeiramente, com verba pública ou proveniente de programas de parceria público-privados, ampliaram o risco de ocorrências de episódios de corrupção.

A "indústria da corrupção", identificada pelos agentes públicos aqui e lá fora, demandou intensificação de programas e metodologias de compliance - ou seja, de adequação contínua das atividades corporativas aos marcos legais em vigor.

A disseminação de mecanismos de controle cristalizou, assim, um novo tipo de serviço, com regime e disciplina próprios, consolidando a função de compliance na atividade de governança.  


O desvirtuamento



No entanto, o que devia ser uma grande solução, tornou-se um problema. 

A atividade de compliance, por alguns desses mistérios teratológicos da governança corporativa, não se desenvolveu como ferramenta integrada às atividades-fim das empresas. Deixou de ser uma atividade de suporte gerencial e jurídico para constituir-se em um organismo independente, estranho ao corpo das empresas -  um "freio de mão" extremamente burocrático. 

A partir dessa disfunção surgiu  o que denomino "compliance de formulário" - uma atividade economicamente estéril, que não agrega valor nem para a empresa e nem para a sociedade. 

São ouvidorias que não ouvem ninguém, auditorias que palpitam subjetivamente, formulários redundantes e mal formulados, análises de contratações invasivas,  que se imiscuem na vida privada e na atividade cívica de funcionários e fornecedores. Fórmulas procedimentais, regrando relações sociais, comerciais e institucionais entre agentes públicos e privados,  mais complexas que o manual de procedimentos, honras e continências das forças armadas (!).

Os contratos, razão de ser da livre iniciativa, transformaram-se em verdadeiros textos bíblicos - lotados de redundâncias, obrigações etéreas, juras hipotéticas e exigências cartoriais - muitas delas absolutamente estranhas ao objeto que se pretendia contratar.

O mais impressionante são os custos somados dessa "indústria". Sejam econômicos, sejam relacionais. Costumam superar dezenas de vezes o potencial de riscos de corrupção que visam combater... e obviamente não combatem.


Aberratio Ictus


Ao ignorar as relações sociais, o lado humano, o histórico de relacionamento e o bom nome das pessoas, o "compliance de formulário" reduziu-se a um esquema invasivo de palpites sobre a vida alheia,  pretextando ser isso uma "análise de risco". 

Essa combinação de formulários redundantes e palpites subjetivos, por óbvio provoca danos morais, prejuízos materiais e gera inconstitucionalidades. 

O risco constante é de aberratio ictus -  erro de curso, ou de execução: visa os corruptos, mas atinge os cidadãos de bem. 

No compliance de formulário esse erro é evidente. Não raro, pesquisas invasivas e análises levianas ferem direitos e garantias fundamentais de parceiros negociais, funcionários, prestadores de serviços e fornecedores, "culpando a todos por suspeita".


Paraíso das obras feitas

A necessidade de documentar passos atraiu para o compliance a demanda por vários sistemas de certificação, que são inseridos nos formulários com pesos e notas, sem que o gerente da formulação se dê ao trabalho de verificar sua aplicabilidade aos processos analisados.


Assim, há questionamentos solicitando informações quanto à número de funcionários, ISO 14000, ISO 9000 e existência de estrutura cibernética para fluxo de documentação, enviados para serem preenchidos por velhos professores encarregados de dar um único parecer á companhia, questionamentos quanto à estrutura de apoio e suporte logístico enviados a micro-empresas encarregadas de trocar uma vidraça ou consertar um encanamento do banheiro.

Não raro, quando a título de esclarecer alguma dúvida o encarregado do compliance entra em contato com o fornecedor do serviço, o rol de piadas sobre o sistema se amplia consideravelmente...

Para o corporativo, o compliance está se tornando um verdadeiro freio de mão na etiqueta social. Confunde bons relacionamentos institucionais com risco de favorecimento pessoal e engessa relações comerciais privadas a níveis similares ao que há de pior na burocracia de estado.

Diferenças de estilo, simpatia, abordagem, modo de resolver problemas, talentos - tudo é inserido no liquidificador de reputações e posto sob suspeita.

Ironicamente, muitas vezes o analista da simpatia alheia veta o relacionamento social-comercial por simplesmente não entender o que é sociabilidade, isso porque a função de compliance tem atraído técnicos que muitas vezes não conseguem falar um "oi" para o ascensorista que os serve todo dia... De fato, funções doentias atraem gente doente.

Não se trata de implicância reativa. O que se discute com isso é o perigo de destruir-se o caráter humano das relações institucionais, corporativas e comerciais, visando adequar comportamentos á palpites subjetivos ou formulários frios, não raro desconectados com a causa em questão.

A desumanização implícita na burocratização das relações institucionais, sociais e comerciais da empresa, leva á perda da dinâmica do próprio mercado, sem qualquer ganho moral ou ético.



PEPs - supra-sumo da idiotia


Um grande exemplo do "freio de mão" corporativo no compliance de formulário  é a perseguição obsessiva aos chamados PEPs - indivíduos politicamente expostos. 

O patrimônio de uma vida dedicada à causa pública, as atividades políticas e sociais e o exercício da cidadania, são classificados levianamente e tratados como atividades potencialmente de risco de corrupção, como se a cidadania por definição corrompesse.  

Na busca por evidências de corrupção, o compliance de formulário se imiscui na intimidade, crenças e filiações dos cidadãos, "criminalizando" a vida pública de pessoas ilibadas. Parentescos com funcionários públicos também contam - seja o parente um ministro do Supremo Tribunal Federal ou a professora aposentada em Santana do Parnaíba...

Fosse o compliance desenvolvido no Estado do Amapá, onde 92% da população exerce atividade funcional - a empresa-vítima da análise de compliance cessaria toda e qualquer atividade... 

Visando prevenir uma atividade criminosa, o compliance incorre na prática de outro delito. Pratica criminosamente a discriminação, segrega corporativamente quem exerce atividades civis em sindicatos, partidos, associações de classe, ordens profissionais, conselhos participativos, igrejas, etc. Fere de morte a Constituição da República.

A exemplo de outras "santas inquisições" que ocorrem na tragédia que está se tornando a vida cotidiana no Brasil, o compliance reprime inadvertidamente o exercício da cidadania.

No mesmo sentido, dirigentes e funcionários de empresas contaminadas por essa doença burocrática, que é o compliance de formulário, têm sido "instruídos" a não desenvolver relações com gestores políticos. Agem como se a Administração Pública fosse um ente criminoso e o funcionalismo público uma doença...

Na verdade, isso tudo revela um fato trágico - diz respeito à falha na formação do cidadão e do profissional. Falta cultura, estudo, vivência, maturidade e conhecimento de Teoria do Estado - algo que também se observa nas novas hostes de controle atuantes na própria Administração Pública.

Assim, o "compliance de formulário" premia os alienados - aqueles que não possuem qualquer histórico de cidadania - geralmente os mais propensos a agir mal, porque nada têm a perder...


Olimpo em Bangladesh

Outro exemplo de alienação é a exigência descabida de análises de crédito e situação fiscal para  prestadores de serviço intelectual.


Há casos de profissionais liberais, firmas individuais, micro-empresários, ficarem absolutamente ensandecidos para comprovar "faturamentos" nos últimos três meses anteriormente á contratação, ou despenderem tempo precioso para obter um contrato de seguro, só para atender ao compliance antes de dar um simples parecer, trocar uma peça de automóvel, proceder a uma análise de risco pontual e de emergência, fornecer um equipamento ocasional ou fazer uma pequena manutenção na sede da empresa.

A absoluta desconexão dos critérios de compliance com a finalidade da contratação do fornecedor é de tal forma evidente que revela mais que um desvio de finalidade: expõe direcionamentos propositais em processos de seleção, favorecimento a grandes empresas em detrimento de pequenos fornecedores (cartelização) e outras práticas condenáveis em qualquer compliance que se julgasse sério.

Paradoxos dessa ordem comprometem não apenas a qualidade do serviço mas, também, caracterizam vícios insanáveis, como barreiras comerciais arbitrárias que terminam por distorcer o mercado.

Como se fosse possível administrar um Olimpo em Bangladesh, a desconexão entre critérios e realidade atinge incríveis paroxismos. 

Não raro, o descredenciamento de fornecedores em recuperação judicial (que atinge 40% das atividades econômicas comerciais no Brasil), ou com certidão positivada para dívida ativa (oito em cada dez empresas no Brasil), além de prestar enorme desserviço à economia ignora a própria situação de risco da empresa contratante onde o "compliance de formulário" funciona.

No Brasil, é comum nos depararmos com exigências de compliance que não aprovariam a própria empresa contratante.

Pior, a pirâmide da arrogância externada pelo compliance de formulário costuma sedimentar enormes inconformidades, confirmadas por entes especializados em escrever exatamente o que o vértice da corporação que ler. 


Alienação e inocuidade


O efeito dessa distorção é funesto. Causa danos morais e revela-se ineficaz na prevenção  de imoralidades e falcatruas.  Pode ainda resultar em catástrofes.

Nessa atividade absolutamente entrópica, o administrador assume o risco de selecionar justamente os sociopatas - aqueles que não se relacionam com ninguém, não agem em prol do interesse público, não se expõe a risco e não se interessam pelas pessoas, a não ser eles próprios, dissimuladamente. Essa distorção cognitiva poderá se refletir no vício da entropia contratual, com resultados ineficazes e opostos aos desejados.

No campo da análise transacional corporativa, o problema não atinge apenas contratados, mas, também, os que palpitam nas contratações. A entropia do compliance de formulário atrai para o setor os persecutores da vida alheia, chatos de todo tipo, pessoas com problemas - gente infeliz, especializada em ferir os outros e produzir frustrações, como também os cínicos desonestos. 

Há, ainda, toda a "cadeia produtiva" do compliance de formulário, que a exemplo dos gastos  públicos com sua nababesca jusburocracia, já consome grande parte do orçamento nas empresas privadas. 

Assim, além dos custosos departamentos internos, seguem-se as consultorias jurídicas e contábeis "especializadas", escritórios de investigação interna e externa, checagem e cópias de arquivos, leitura de e-mails, verificação de contas de hotéis, restaurantes, telefones, empresas de auditoria, de investigação, escritórios de advocacia  que cobram por hora, etc. Uma verdadeira "síndrome do time sheet"... 

Isso pode desmoralizar a verdadeira atividade de compliance integrada, comum a qualquer empresa honesta e praticada desde priscas eras, antes que a reatividade à corrupção a transformasse  a checagem de reputação nesse apêndice custoso e burocrático.  

Caminha assim, o compliance, para tornar-se um instrumento inócuo quanto à sua finalidade.


A armadilha do não compliance


Nem se venha com a manjada pergunta: "se você acha o compliance caro, tente o não compliance para ver..." Por óbvio, é um falso dilema.

Ninguém advoga aqui a desonestidade ou ausência de compliance. Pelo contrário, o que se pretende resgatar com esse artigo crítico é a inteligência perdida na implementação burra que se está fazendo da ferramenta.

Na forma como hoje é aplicado, o compliance de formulário só beneficia quem o pratica. Perdem a lei, a cidadania, a empresa e o mercado. 

Há que se reformular, portanto, e rápido, conceitos hoje propagados aos quatro ventos, no que tange a compliance - e que nada são que mera metaburocracia...





Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio diretor do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Integrante do Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB, da Comissão Infraestrutura e Sustentabilidade da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB/SP. É membro do Conselho Consultivo da União Brasileira de Advocacia Ambiental, Vice-Presidente Jurídico da Associação Paulista de Imprensa - API,  Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal e responsável pelo blog The Eagle View.




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