REFLEXÕES EXISTENCIAIS À BEIRA DE UM ATAQUE DE NERVOS
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O Grito - de Edvard Munch, 1893 |
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro
Crise econômica, crise social, crise política, crise sanitária, crise profissional, crise familiar, crise pessoal, há momentos na vida em que existir é se angustiar.
Nessa ocasião, vem à mente, como em um índice remissivo, entre passagens bíblicas e salmos (sempre ajudam...), o desassossego de Pessoa, o Cântico Negro libertador de José Régio, o cinismo rodriguiano da vida como ela é, o mitológico Sísifo revisitado por Camus, reminiscências de passagens da vida e aventuras intelectuais... que sempre nos aquietam.
Como diz Pessoa: "O campo é onde não estamos. Ali, só ali, há sombras verdadeiras e verdadeiro arvoredo"...
Como diz Pessoa: "O campo é onde não estamos. Ali, só ali, há sombras verdadeiras e verdadeiro arvoredo"...
A vida é um angustiante somatório de sensações, alegrias e desgostos, aquisições, experimentações e aprendizados, que nos remetem, sempre, à busca pela nossa essência, por aquilo que é mais básico e que melhor define nossa alma, nosso existir.
O fato é que, após rodarmos como cães atrás do próprio rabo, percebemos que somos nós próprios os perseguidores da nossa existência.
O existir, supõe valorizar a vida mais que nossa substância. Se assim é, construímos nossa vida na medida em que subsistimos nela.
Sobreviver é existir. Não há racionalidade na existência, somente sensações e experimento. De onde partimos, até onde chegamos, já nos modificamos - a origem e destino também. Essa é nossa angústia existencial - sem a compreensão de um sentido, cuja única resposta é a liberdade.
A liberdade explode quando se exclama: "ide! Tendes estradas, jardins, canteiros, pátria, tetos, regras, tratados, filósofos e sábios... Eu tenho a minha Loucura! Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura, e sinto espuma, sangue e cânticos nos lábios. Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!" (José Régio, "Cântico Negro).
Daí porque a angústia nos ataca quando nos indicam caminhos que não queremos vivenciar. Afinal, somos nossos próprios senhores, e também não somos - aliás nada somos, ou somos tudo o que somos e temos.
Sartreano? Kierkegaardiano? Camusiano? Essa angustiante percepção existencial está na obra e na poesia de Fernando Pessoa e José Régio, ou nas crônicas, peças e contos de Nelson Rodrigues.
Eles nada inventaram. Essa angustiante percepção vive em nós. Ela se revela naqueles momentos de epifania, quando a clareza de tudo vem à mente e, então, mentimos... com o propósito de disfarçar perante outros a absurda realidade vislumbrada, na qual nos inserimos.
Essa condição absurda, que nos obriga a dissimular a ciência do fato e seguir em frente, pode ser traduzida no mito de Sísifo.
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Sísifo, revisitado por Albert Camus |
Sísifo, o pastor de ovelhas e filho bastardo de Éolo - deus dos ventos. Um exemplo de empreendedor.
Empreendedor e ardiloso, Sísifo transformou a pequena Éfira na poderosa Corinto e não hesitou em expor um pecadilho de Zeus em troca de um sistema de abastecimento de água para sua cidade.
Zeus não perdoou. Diante da batalha que passou a travar contra o deus dedurado, Sísifo enganou a própria morte, pretextando um retorno ao mundo dos vivos para resgatar seu corpo insepulto.
Sua pena, todos conhecemos. A condenação de Sísifo representa o maior símbolo da angústia de nossa existência: rolar eternamente uma pedra morro acima, para vê-la rolar, impotente, do topo, morro abaixo, obrigando-o a repetir tudo no outro dia... o preço por enganar os deuses e a morte.
Essa condição absurda também determina nossa vida, construída sobre a esperança do amanhã... e sempre do amanhã.
Mas o amanhã é o que nos aproxima da morte - nosso último e invencível inimigo. Vivemos como se não tivessemos certeza da morte, como se pudessemos adiá-la, um dia, outro, mais uma hora, duas... indefinidamente.
O mundo em que vivemos é cruel e desumano. O mercado nos massacra diariamente. O Estado - o ôgro burocrático - nos quer devorar. Ambos não permitem que sobrevivamos se não criarmos uma fina capa de romantismo, que nos guie pelo mundo. Não há, afinal, racionalidade no que vivenciamos, vivemos.
"Desde que o momento absurdo é reconhecido, ele se torna a mais angustiante de todas as paixões", diz Albert Camus - relacionando Sísifo e nossa existência.
Ante a angústia existencial, antecipar o embate com a morte aparenta ser o proceder à própria libertação do absurdo.
Seria isso um epílogo romântico, reescrito pelo autor da supressão da própria vida ou... uma fuga covarde, desprezível e egoísta?
O próprio Camus alerta para a inocuidade dessa atitude. Por óbvio, é preciso tomar o absurdo a sério, reconhecer a contradição entre o desejo da razão e o mundo insensato. Suicídio, não é solução alguma.
Concordo com Camus. Sem vida não há existência. Não há o limite e nem o absurdo da existência.
Sem dúvida, é de nossa essência existir. E a contradição deve ser vivida. A razão deve ser buscada até os limites da desesperança. O absurdo, mesmo vislumbrado, ali está para não o admitirmos.
É preciso assumir o absurdo para combatê-lo. Desse confronto surge a vida, a liberdade e a nossa maior conquista: o domínio de nossa existência, ainda que circunstâncias nos oprimam!
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Fernando Pessoa e a apoteose do absurdo |
A vida é a própria metafísica! A liberdade é metafísica! E nós, somos todos absurdos!
Uma exclamação típica de Pessoa.
Para o homem absurdo, a liberdade não se vincula a esperanças.
Não há melhor futuro, muito menos eternidade. Há um sentido em prosseguir, em perseguir um objetivo, para criar significado à vida.
Não há melhor futuro, muito menos eternidade. Há um sentido em prosseguir, em perseguir um objetivo, para criar significado à vida.
Esse é o romance da humanidade - sua angústia e perdição. Devemos, às vezes, e quase sempre, nos perder nisso - justamente porque vivemos.
Abraçar o absurdo implica abraçar tudo de insensato que o mundo tem a oferecer. Sem um sentido na vida, não existe uma escala de valores.
O que conta não é a melhor vida, mas os que a vivem! Se vivemos a vida, podemos abraçar a liberdade, ainda que circunstancialmente não a pratiquemos.
Vamos assumir a revolta, a liberdade, e a paixão!
Se a revolta surge da consciência do absurdo da vida, da sua ausência de sentido, a liberdade surge da ciência plena, advinda da própria solidão! Afinal, nossas escolhas são solitárias.
Já a paixão, é razão da vida. Não vivemos se não nos apaixonamos. E a paixão que importa é a paixão humana, pessoal.
Olhamos no espelho e repetimos: "sou Don Juan - seduzo, caio de cabeça nas paixões nas quais me enredo e me enredo apaixonadamente nas paixões que desperto - mesmo sem estar apaixonado".
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Nelson Rodrigues
"liberdade é mais importante que o pão"
"Nada mais cretino e mais cretinizante do que a paixão política. É a única paixão sem grandeza, a única que é capaz de imbecilizar o homem", vaticinava Nelson Rodrigues.
"Aplaudo toda viuvez" (como o rodriguiano Diabo da Fonseca), mas, também, "gosto da delícia da perda de mim", como um Pessoa apaixonado.
"Vivo sempre no presente. O futuro, não o conheço. O passado, já o não tenho. Há dias que são filosofias, que nos insinuam interpretações da vida, que são notas marginais, cheias de grande crítica, no livro do nosso destino universal", diz Pessoa.
Somos atores, interpretamos papéis na vida pública, no trabalho, nas redes sociais, na política, e na intimidade. No entanto, somos nós, em todos os papéis que representamos.
O bom ator social, vive, não incorpora outra personagem que não a própria.
Na vida, quando atuamos, devemos inspirar os romances construídos a nosso respeito - jamais incorporar o personagem. "Vivemos um entreatos com orquestra"... diria Pessoa
Na vida, quando atuamos, devemos inspirar os romances construídos a nosso respeito - jamais incorporar o personagem. "Vivemos um entreatos com orquestra"... diria Pessoa
Somos o guerreiro, o conquistador, a águia propensa a buscar a eternidade na história. O herói consciente do fato inexorável de que nada irá durar e nada significará vitória final.
Para tanto, é preciso retomar as rédeas da vida. Sabermos que circunstâncias... serão sempre circunstânciais. Elas passam. Embora nos toquem, são exteriores, .
Porém, a vida nos foi dada, esta é absolutamente nossa.
Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio diretor do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Integrante do Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional, membro da Comissão de Direito Ambiental do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB e da Comissão Nacional de Direito Ambiental do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB. É Editor- Chefe do Portal Ambiente Legal, do Mural Eletrônico DAZIBAO e responsável pelo blog The Eagle View.
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Fernando e a reflexão sobre o existir, sobre sobreviver. Existir, como diz, é passar por sensações e experimentos. É simplesmente viver e passar por todas as alegrias e angústia.
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