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terça-feira, 26 de julho de 2016

TRATAMENTO DE DOUTOR AO ADVOGADO PROVÉM DE ROMA ANTIGA

Cícero, no Senado Romano: a origem do termo e da deferência aos tribunos de Roma 




Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro


Outro dia, buscando nas infovias da vida um artigo doutrinário, me deparei com um texto assinado por uma daquelas autoridades lotadas de certezas, desprovidas de qualquer dúvida e imersas na mais absoluta arrogância.

Do alto de sua titulação acadêmica, o indigitado - como tantos outros de mesma estirpe professoral,  insistia em retirar o tratamento de doutor aos advogados, entendendo tratar-se o termo de uma titulação acadêmica.

Pura grosseria.

É de impressionar o nível de reatividade de certas pessoas ao uso da forma de tratamento como tradição, uma deferência a uma categoria profissional que detém o monopólio de um dos três poderes do Estado Moderno - o Judiciário, e constitui ampla maioria nos demais - legislativo e executivo.

Agem como se isso significasse "ofensa" à titulação acadêmica. Só Freud para explicar essa inquietação nervosa face ao tratamento de doutor dado aos advogados, magistrados, delegados e promotores.

O caso é que há muita confusão e preconceito com o uso do termo "doutor", seja como forma de tratamento, seja como título acadêmico, como se um excluísse o outro.

Porém, a história demonstra o acerto do uso do termo também como forma de tratamento. E mais: o tratamento precede o título. Senão vejamos:

Doutor é derivado de doutrinador.

O termo vem de Roma antiga. O direito romano entendia como fontes do direito o costume, a lei, o plebiscito, a interpretação dos prudentes e os editos dos magistrados.

A interpretação dos prudentes era sempre um ensinamento - firmava uma doutrina.

Não diferia esse entendimento, da aplicação prudente da doutrina,  ao termo usado para quem lidava com as regras da religião na grécia antiga. O termo νομοδιδασκαλος  (nomodidaskaloi), ou seja, doutor em leis,  foi usado inclusive na tradução para o grego dos livros bíblicos e da torá, para se referir aos doutrinadores da religiâo judaica. 

Doutrina é ensinamento - vem de docere: ensinar, doutrinar - que está na raiz de docente e doutrinador.

O termo docere foi introduzido no mundo do direito romano por Cícero, o grande advogado romano, em 55 a.C., quando escreveu De Oratore, onde pregava que um tribuno devia usar da eloquência, a arte de bem falar.

Segundo Cícero, o  orador eloquente devia cumprir três objetivos: docere - ensinar, explicando e expondo argumentos; delectare - agradar, deleitar, captando o agrado e a atenção do auditório, de modo a não causar aborrecimento; e movere - comover, apelando às emoções e tentando "tocar" os sentimentos do auditório.

A doutrina, portanto, nasceu vinculada ao direito. Ela provinha dos doutores, ou doutrinadores. Quando havia harmonização nessas opiniões dos doutrinadores, firmava-se a comunis opinium doctorum, que chegou a ser expressamente equiparada à lei no período do Imperador Teodósio II, no século V.

Os doutores advogavam, atuavam como jurisconsultos ou tribunos (afinal os advogados, na república até meados do império, eram todos patrícios).

Mas, o que seria "advogar"?

O termo advogado proveio da contração de ad vocatus -  para ser chamado (vocare).

A advocacia era uma atividade nobre e inviolável. Ter um tribuno disposto a defender sua causa, portanto, era uma honra - e daí vem o termo honorário- uma retribuição à honra de ser defendido por um tribuno, ou ter seu ponto de vista abalizado pela prudência, ou ensinamento de um jurisconsulto.

As primeiras “ordens de advogados”, por sinal,  foram instituídas pelos imperadores Teodósio I (379-395 d.C.) e Artêmio, e, no Império Romano do Oriente,  por Valentiniano (364-375 d.C.), Marciano, Leão, Justino e Justiniano, tamanha a importância dada à nobre profissão.  

Causas eram defendidas pelos advogados perante autoridades (Consules, Senado ou Pretores) -  a douta opinião, por sua vez, consistia em interpretar com "prudência" os textos legais. Jurisprudentes, então, eram jurisconsultos encarregados de adaptar os textos legais às mudanças do direito vivo, buscando solucionar os conflitos, preenchendo, assim, as lacunas deixadas pelas leis.

Adotada a doutrina pelos pretores, a jurisprudência tornava-se um edito.

Os doutrinadores formam a atividade orgânica do direito. São os doutrinadores que ousam não apenas interpretar a lei e alterar a sua interpretação conforme os costumes mas, também, propugnar sua abolição em prol da justiça. Essa atividade da postulação é conferida aos advogados, que exercem essa prerrogativa no seu ministério privado. Assim, doutrinando, os advogados postulam.

Por isso os advogados são chamados de doutor, desde os tempos de Roma, e no judaísmo, sob ocupação romana, também.

Por óbvio que à medida em que a atividade se ramificou, magistrados, persecutores penais e autoridades policiais também ganharam o tratamento pronominal.

Voltando à história, com a decadência do império romano, o termo ganhou asas.

O cristianismo, após adotar cânones romanos a partir do Concílio de Niceia, adotou o termo  "doutrina religiosa" e o termo "doutrinador" ou "docente", para seus pastores e santos.

O cristianismo fez bem em usar o termo. De fato, Jesus foi um grande doutrinador (e fez seguidores, todos doutrinadores). Como rabino, Jesus alterou os eixos de entendimento do que era o divino, transmitiu a impressão de Deus como fonte viva de amor incondicional e o aproximou da humanidade. Advogou para a causa, porém não advogou em causa própria - e nem poderia - perante a autoridade romana - ainda que esta - Pilatus, percebendo o problema, lhe tenha dado tecnicamente uma oportunidade... Não podia, dadas as circunstâncias, ser tratado como doutor quando estava na terra, mas é merecedor do tratamento pela eternidade.

Posteriormente, na idade média, com a organização das Universidades, o termo doutor passou a integrar a qualificação acadêmica dos que professavam as doutrinas do direito, da filosofia e das ciências - e nesse caso específico, virou título. Só então, o tratamento de doutor estendeu-se à medicina, como forma respeitosa de tratamento aos seus bacharéis.

Na verdade o título sempre foi um pleonasmo - titular um docente como doutor é nominá-lo professor duas vezes.

Não é preciso ser PHD,  portanto,  para observar que os doutores já militavam no direito ANTES de existirem universidades...

De raiz latina, o direito português não ignorou o detalhe milenar, e o tratamento de doutor acompanhou os bacharéis em direito portugueses em respeito à tradição, até aportarem - os bacharéis e a forma de tratamento a eles devida - no Brasil.

Assim, em respeito à arte do direito, de Cícero até hoje,  DOUTOR é forma de tratamento devida ao profissional do direito,  e emprestada à academia, que o utiliza também como título.

Não é possível, definitivamente, confundir um com o outro, a menos que se queira assassinar a história.

Há quem faça questão do uso do tratamento ou mesmo busque tutela judicial para obrigar outros a fazê-lo. A postura é tão condenável quanto a daqueles que se arrogam academicamente a monopolizar o termo.

O fato é que educação e polidez não se exige de ninguém, espera-se que o indivíduo as tenha e as use devidamente.

A polidez no trato, a cordialidade nas relações,  são assuntos complexos  nos dias de hoje, em que regra é agredir para argumentar e ofender para se impor.

O resgate histórico das formas de tratamento, aqui singelamente proposto, dirige-se aos que diariamente penam nos balcões da mais cara e paquidérmica das burocracias do planeta. Aos que visam assegurar ou pleitear direitos de cidadãos cada dia mais indefesos... com enormes custos e sacrifícios pessoais. Aos que se vêem diuturnamente desprezados por quem faz da ignorância modo de vida.

A negação, carregada de reatividade,  ao uso do tratamento, denuncia o sujeito cognitivamente burocratizado, que se agarra a formas "excludentes" de segregação acadêmica, talvez em busca de alguma afirmação.

Essa negação reiterada, que se observa muitas vezes até mesmo entre colegas de profissão, ignora, fato notório: o termo é largamente utilizado no Brasil, na Itália, na França,  em Portugal, nos Estados Unidos, na Alemanha, etc., como forma cordial de tratamento aos profissionais do direito, e, sobretudo, entre profissionais do direito - simples assim.

Portanto, se você, leitor, for uma pessoa educada, polida, inteligente e, sobretudo, de bem com a vida, não se incomodará em tratar um jurisconsulto como doutor.

Porém, se estiver de mal com a vida... o mundo não mudará se deixar de fazê-lo. Na verdade, negar o tratamento não demonstrará qualquer "erudição", apenas evidenciará má educação - ainda que haja doutrina farta a apoiar a grosseria...

Sem esses doutores do dia-a-dia, que doutrinam a cada petição subscrita, que irritam autoridades, acadêmicos, partes contrárias e mesmo clientes convictos de suas razões, não haveria democracia, só a mais ordinária ditadura da burocracia.




Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio diretor do escritório Pinheiro Pedro Advogados, integra o Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional. Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB, membro da Comissão de Infraestrutura e Sustentabilidade e da Comissão de Política Criminal e Penitenciária da Ordem dos Advogados do Brasil – Secção São Paulo (OAB/SP). Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal. Responde pelo blog The Eagle View.




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5 comentários:

  1. Vc foi relativo usando termo grego e latino e cultura judaica...Faltou explicar mais. Talvez vc não consiga atingir a tal matéria se ocupando do termo histórico e legado que foi suplantando com estudos e avanços melhores para possíveis Doutores.

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